[Valid Atom 1.0] O Fantástico Literário na Web: setembro 2012

25 de setembro de 2012

Murilo Rubião. O Bloqueio.



“O seu tempo está próximo a vir, e os seus dias não se alongarão.”
(Isaías, XIV, 1)

 No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal, tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar no novo dia, confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade. Pôr isso não deu de imediato importância à vibração de vidros, atribuindo-a a um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para fortalecer essa frágil certeza. O barulho era intenso. Vinha dos pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e consultou o relógio: três horas. Achou estranho. As normas do condomínio não permitiam trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação de Gérion contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser excelente a administração do prédio. De repente emudeceram os ruídos.
Pegara novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se.
Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo?
Do temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para sua casa, que abandonara, às pressa, pôr motivos de ordem familiar. Vestiu-se, olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã ensolarada, pensando se ainda veria outras.
Mal abrira a porta, chegou-lhe ao ouvido o matraquear de várias brocas e pouco depois estalos de cabos de aço se rompendo, o elevador despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá em baixo com uma violência que fez tremer o prédio inteiro.
Recuou apavorado, trancando-se no apartamento, o coração a bater desordenadamente. – É o fim pensou. – Entretanto, o silêncio quase se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.
Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzido a pó fino amontoado nos cantos.
Não via rastros das máquinas. Talvez já estivessem distantes, transferidas a outra construção, concluiu aliviado.
Descia tranqüilo as escadas, a assoviar um música em voga, quando sofreu o impacto da decepção: dos andares inferiores lhe chegava toda a gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.

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Comentário do conto O Bloqueio.

“O Bloqueio” apresenta vários elementos constitutivos do conto, segundo a teoria elaborada por Poe. Durante todo o conto o narrador mantém a tensão necessária para prender a atenção do leitor, que deverá ler o conto numa “assentada”. Outro ponto a ser considerado é a circunscrição de um espaço fechado. O tempo e o espaço acham-se condensados; o conto se passa num espaço reduzido.
O autor cria, em “O Bloqueio”, uma situação absurda, vivida por Gérion, um homem que abandona esposa e filha, saturado da presença grotesca da mulher, rica e manipuladora, que o humilha constantemente. Gérion, para se libertar dessa figura repugnante, refugia-se em um apartamento, em fase final de construção. Coisas estranha acontecem: ele é incomodado constantemente pelo ruído de uma máquina que destrói base e a parte superior do prédio onde se encontra. Tenta evadir-se, mas percebe que a parte inferior do edifício acha-se destruída e que o apartamento está suspenso no ar. Sente a presença da máquina, à espreita, rondando seu apartamento, aguardando um deslize seu, para que possa enfrentá-lo. O conto termina com o protagonista entrando na sala, fechando a porta com a chave, ao mesmo tempo maravilhado e estarrecido ao se deparar com um arco-íris, formado pelas luzes que penetravam pelas frinchas do apartamento, emanadas pelo maquinário fantasmagórico.
A máquina constitui a questão fundamental do conto “O Bloqueio”; é em torno dele que gravita toda a história; ela está presente nos sonhos de Gérion e o persegue nos momentos de vigília. A partir dessa idéia, podemos falar numa segunda história, construída metaforicamente, e que revela o processo de construção do conto. A “história secreta” encontra-se apoiada em três pontos fundamentais: o autor, a personagem Gérion e o leitor.