9 de março de 2012

Lídia, conto de Maria Teresa Horta.

Primeiro foi uma espécie de impressão nos ombros e no pescoço. Uma ardência. Uma espécie de queimadura à flor da pele. Tentou ver-se no espelho do quarto: nua da cintura para cima, torcendo-se um pouco. Pareceu-lhe descobrir uma pequeníssima mancha vermelha em cada omoplata. Foi buscar o espelho redondo, cabo de prata trabalhada toda à volta, mas não conseguiu distinguir mais de perto.
Levou os dedos de novo às costas e tacteou um pouco. Mexeu de cá para lá a ver se descobria alguma grossura, mas não sentiu nada; absolutamente nada. Vestiu a blusa mais fina a abotoar à frente, praticamente translúcida e durante o resto do dia quase se esqueceu fresca e leve daquela impressão, daquela comichão.
Ao fim da tarde, quando já fazia escuro, o ardor voltou: docemente, num incômodo sem causa. Lídia nem sabia afinal o que sentia. E quando o marido chegou para jantar encontrou a casa às escuras e fria. Como que vazia na escuridão opaca dos quartos. Gritou: “Lídia!”, mas ela não lhe respondeu logo, entorpecida, entontecida, como se tivesse bebido um pouco.
Realmente Lídia sentia muita sede.
A mãe vomitara sangue quando ela era muito pequena. Vira-a levar os dedos à boca e eles saírem sujos de sangue enquanto tossia sem conseguir parar. Num desespero sem nome. Agarrara-lhe um dos braços abaixo do cotovelo e não o largara mais até a hemoptise acabar, pouco a pouco, de forma surda e equívoca.
O avô que era médico deitara a mãe num cadeirão baixo e largo na casa de jantar, dera-lhe um comprimido, um copo de água gelada. Pusera-lhe um saco de água quente aos pés e sentara-se numa cadeira em frente, hirto, à espera.
Estava muito branco e silencioso, como que a escutar aquele pequeno silvo que saia da boca da mãe, aquele borbulhar contínuo no peito da mãe enquanto tossia e levava um guardanapo de linho à boca e ele voltava sempre manchado de encarnado vivo. A mãe inclinava a cabeça para trás no espaldar forrado do cadeirão e de olhos fechados tentava dominar aquele pequeno repuxo de sangue que lhe subia do corpo a aflorar os lábios cerrados e lívidos; a perderem os contornos.
Lídia lembrou-se da mãe e teve medo, inexplicavelmente, ao lembrar aquelas marcas que julgara perceber nas costas quando olhara no espelho. Simétricas. Totalmente simétricas: em cada omoplata numa pequeníssima dor que começava agora a descer pelos braços, à flor da pele. Um formigueiro, era isso. Como um formigueiro na parte exterior dos braços que prendeu ao pescoço do marido inclinado sobre a cama ainda de casaco vestido tal como chegara da rua.
“Teus braços tão quentes!” – admirou-se ele, beijando-a na boca. Mas ela recuou porque lhe era insuportável o contacto do seu corpo. Nauseada. Percebeu então que asfixiava; as janelas fechadas da casa pareceram-lhe por momentos terem grades.
Lídia recuou enrodilhando a colcha de renda da cama e disse baixo, como se estivesse a perder as forças: “Sufoco”. E não se levantou para fazer o jantar. Dormitou um pouco antes de o marido começar a despir-se para se deitar. Mas quando ele se estendeu a seu lado ela gritou. Um grito estrídulo e modelado.
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Comentário do conto Lídia, de Maria T. Horta

O extraordinário conto de Maria Teresa Horta é conduzido por uma narradora heterodiegética, omnisciente, que, com ostensiva liberdade, devassa a interioridade da personagem principal – Lídia – desvendando os seus pensamentos e sentimentos, sem nenhum tipo de controle. Tal estatuto narrativo permite que tenha domínio pleno dos fatos narrados.
Uma leitura do texto que flutuasse apenas em volta do seu sentido manifesto, seria, decerto, tão limitada quanto é a compreensão do marido de Lídia para o fenômeno da radical mudança de comportamento dela, interpretada como loucura. Nestes termos, o final do conto seria visto como uma tragédia, desencadeada pelo suicídio da personagem, que, convicta de que se tornara uma ave, abre os braços (asas) e pula da janela para a morte.
Só uma leitura atenta para o sentido latente do texto dá conta da riqueza da mensagem por ele veiculada. Assim, dentre as várias formas de compreender o conto, optamos pela leitura do mesmo enquanto alegoria da libertação da mulher. Assim, a aparente loucura de Lídia nada mais é que um signo da “metamorfose interior” pela qual passa a personagem. A aparente loucura de Lídia pode ser vista como a metáfora da mudança gradativa, realizada por meio de um processo de transformação interior da personagem, que a conduz para uma tomada de consciência acerca da sua condição existencial, do seu estar na vida presa a convenções altamente limitadoras e repressoras, originadas de costumes milenares que subalternizam e tratam a mulher de forma desigual e injusta no contexto social e familiar.
A parte final do conto, com a imagem de Lídia alçando o Vôo, representa metaforicamente o ponto culminante desse processo. O salto para o alto representa literariamente um salto de uma situação negativa e repressora para uma outra oposta e libertadora, feita por opção do sujeito. Vale observar que a mudança de Lídia, sendo interior, não se processa de forma brusca e imediata. Ela ocorre lenta e gradativamente.
Lídia não percebe que lhe nascem asas, apenas vê uma mancha vermelha, porque as asas eram simbólicas, significando a mudança interior, logo não poderiam ser percebida através do espelho. Este não poderia refletir o que se passa no interior da personagem: as mudanças de ordem psicológicas, a reviravolta dos sentimentos, a subversão dos valores, as mudanças em sua visão de mundo, as rupturas com os padrões de comportamento vigentes.
O conto, de orientação feminista, se afirma como uma alegoria do despertar da mulher para a sua condição na sociedade, para o papel que lhe é destinado no âmbito das limitadas possibilidades possíveis.
O texto sugere, através de uma alegoria das asas, a libertação da mulher que vive de acordo com os padrões convencionais da sociedade, à medida que ela rejeita o lugar que lhe é marcado no grupo social e parte para a busca de “um lugar não-marcado”, o qual não seria, necessariamente, o de esposa e dona de casa, limitado ao espaço do lar e da família. Como mulher da classe média, casada, ela ocupa o lugar que lhe é marcado, onde deve permanecer e cumprir os seus deveres. É isto o que se espera dela, esse é o comportamento que deve ter, dentro dos princípios da normalidade estabelecidos pelo grupo social.
O processo de transformação de Lídia avança por etapas, é doloroso e alvo da incompreensão dos que a rodeiam. Todavia, uma vez iniciado, não tem caminho de volta... prossegue até à libertação ser conseguida.
O final do conto é de uma tocante poeticidade, com a imagem do vôo da personagem rumo a libertação e ao recomeço de uma vida até então vivida em função do que dela esperava a família e o grupo social, tal como viveram sua avó, sua mãe ...