31 de julho de 2014

Um Esqueleto, de Machado de Assis


Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha de quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece que até se fizeram alguns trocadilhos.
O mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva.
É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de um artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo.
Aconteceu no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a aprendera com o Dr. Belém.
— Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.
— Não, responderam todos.
— Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu-do-chile de abas extremamente largas.
— Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
— Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um planeta...
— Mas esse homem?
— Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:
— Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida. Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse: 
— Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do esqueleto.
A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann. Alberto começou a narração. 
O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto. Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinqüenta. O estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.
— Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado.
— Vai casar?
— Vou.
— Com quem?
— Com a D. Marcelina.
D. Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não formosa, mas assaz simpática, possuía alguma cousa, mas não tanto como o doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos. Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal cousa.
— Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
— Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
— Não será uma formosura.
— Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
— Simpática, educada e viúva. Minha idéia é que todos os homens deviam casar com senhoras viúvas.
— Quem casaria então com as donzelas?
— Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas... O doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a falar da viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.
— Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa... Nunca a viu?
— Nunca.
— É impossível.
— É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.
— Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la.

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Comentário do conto "O Esqueleto".


O conto “Um esqueleto” tem seu tema baseado em um fato real macabro, e “...o tal esqueleto seria o de uma cantora lírica francesa, a bela Eugênia Mege, que ao chegar ao Brasil se apaixonara por um médico de grande clínica da antiga capital do Império, o Dr. Antônio José Peixoto. Assassinada pelo marido ciumento, seu corpo fora depois roubado da sepultura pelo amante, que lhe armara o esqueleto e o colocara, numa vitrina, em seu consultório, como um caçador ardente que colecionasse os seus troféus” .

O louco que protagoniza a narrativa é um insano. Assim, a trama desenrola-se entre peripécias medonhas que devem ter feito correr um calafrio pelas alvas e castas espinhas das leitoras oitocentistas do Jornal das Famílias. O epílogo é, entretanto, abrandado pelo mesmo artifício de outras narrativas: o nefasto personagem Dr. Belém, um doente mental, seria realmente um louco. Se tivesse existido... “Mas o Dr. Belém não existiu nunca - pondera Machado - eu quis apenas fazer apetite para o chá...”. E o autor reduz a narrativa, aterradora até então, aos “cestos de costuras”. 

“Um esqueleto” apresenta a realidade, prosaica, em contraponto ao fantasmagórico, arrepiante. Há nestas narrativas alguma influência dos autores fantásticos de seu tempo, como E. T. A. Hoffmann e Edgar Allan Poe, ainda que Machado desfaça os efeitos suscitados pelo insólito com uma brusca retomada da realidade, pondo fim ao efeito fantástico e, consequentemente, projetando a narrativa no âmbito do “estranho”.



Concluindo, nos contos fantásticos machadianos, não há a justificativa/explicação para os “fenômenos” narrados; elas são dissolvidas, quase sempre, pela simples dissolução do efeito fantástico “quase-macabro” ou seja, o horror diluído, desmanchado no final da narrativa, como pode ser visto em “O Esqueleto”.