15 de abril de 2016

J.J. Veiga - A Máquina extraviada


Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos. 

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho. 
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta, mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada. 
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro. 
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

LEIA MAIS, clicando na frase abaixo

Comentário do conto A Máquina extraviada


Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), no Bom Fim, em 23 de março de 1937. Os seus contos assinalam seu talento e o vigor da sua ficção, na qual os jogos do poder e da paixão são mostrados sob perspectivas surpreendentes, em tom de humor e fantasia. Sua ficção é, quase sempre, pessimista e irônica quanto às desgraças humanas, com a crueldade da humanidade, que não receia desmascarar, quando escondidas sobre as supostas boas-intenções que costumam apresentar para serem mesquinhos e egoístas.

Logo à primeira leitura do conto, dois elementos chamaram-me a atenção: os nomes dados às duas personagens e a sua relação com a caracterização de ambas, apontando para as diferenças contrastantes ente elas, como um dos caminhos possíveis para a compreensão do texto e da crítica social que nele está embutida.
O nome “Bárbara” significa pessoa sem civilização, selvagem, inculta, desumana, rude. Por sua vez, “Angelina” provém da palavra anjo, significando pessoa bondosa, virtuosa, caritativa. Comparando os dois nomes, percebe-se uma polaridade entre eles, ensejada pela conotação negativa de um e positiva do outro. Este contraste entre as personagens tem continuidade na descrição dos traços individuais de cada uma delas.
Ao devorar os próprios membros e abrir o ventre, sangrando apesar dos torniquetes, Angelina não morre no tempo esperado. Pelas leis naturais que regem o nosso mundo, não há explicação para tal fato. Mesmo assim, o conto não se enquadraria no Fantástico, mas sim de uma alegoria. Neste caso, podemos admitir que o narrador, lança mão da história de Bárbara e Angelina como uma estratégia crítica para apontar as mazelas que tipificam as relações entre duas classes sociais coexistentes em nossa sociedade: a classe alta, representada pela rica Bárbara e a classe média desprivilegiada, representada por Angelina.
Esse conto nos revela duas faces do ser humano: uma está relacionada ao ato de antropofagia coletiva, em que uma classe social privilegiada esmaga e destrói a classe social desprivilegiada, considerada inferior, sem se preocupar com sentimentos e interesses que não sejam os seus ou com necessidades, que não sejam as suas. A outra face liga-se à autodestruição passiva do indivíduo ou da classe que crê nas palavras enganosas e na hipocrisia dos “antropófagos bolivianos” que circulam pela sociedade, nas mentiras proferidas por quem está no poder para manter sua situação de superioridade e de privilégios.
____________________________________________
Imagem na postagem: Foto de Moacyr Scliar.