26 de dezembro de 2011

Comentário do conto O Ex-Mágico da Taberna Minhota.

O estudo de uma obra a partir da perspectiva do fantástico pressupõe o estudo do conceito de fantástico e suas delimitações. Na literatura, o fantástico se desenvolve a partir de um certo abandono da racionalidade que por muito tempo imperou com o propósito de explicar o mundo e o indivíduo. O imaginário entra na literatura como uma nova possibilidade de abordagem de elementos inquietantes e inexplicáveis da realidade. De maneira geral, a primeira idéia que se estabelece com relação ao conceito de fantástico é que ele se define em relação aos conceitos de real e de imaginário. 
Desde o século XIX, foram muitas as definições formuladas, é possível citar como exemplo alguns trechos de textos recentes extraídos da obra Le Conte Fantastique en France de Castex "O fantástico ... se caracteriza por uma intromissão brutal do mistério no quadro da vida real" ou "a narrativa fantástica gosta de nos apresentar, habitando o mundo real em que nos achamos, homens como nós, colocados subitamente em presença do inexplicável". Rogger Caillois em Au Coeur do fantastique diz "Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana". Dentre tantas definições existentes a esse respeito podemos observar a recorrente citação de elementos como o "mistério", o "inexplicável", o "inadmissível" que se introduz na "vida real", ou no "mundo real", ou ainda na "inalterável legalidade cotidiana". Sendo assim, é possível formular a idéia de que o fantástico se estabelece quando, em uma narrativa, se dá um acontecimento inusitado que aparentemente não pode ser explicado pelas leis naturais mas, no entanto, não deixa descartada totalmente essa possibilidade.

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A hesitação experimentada pela personagem, e muitas vezes por consequência pelo leitor, diante de um fato insólito é que caracteriza o fantástico. Segundo Tzvetan Todorov é justamente o momento de dúvida entre compreender um fato como algo possível de ser explicado pelas leis naturais ou considerá-lo um fato sobrenatural que determina o fantástico em uma obra. 
No conto de Murilo Rubião, O ex-mágico da Taberna Minhota, o personagem-protagonista e narrador descreve-se como uma pessoa que percebe sua existência, já em idade madura, quando se olha no espelho de uma taberna. Logo em seguida a esse fato ele começa a fazer mágicas involuntariamente, ou seja, objetos e seres começam a aparecer retirados de seus bolsos, chapéus ou por simples movimentos de suas mãos. Por força das circunstâncias começa a trabalhar como mágico, porém, em nenhum momento essa situação chega a empolgá-lo; as mágicas divertiam o público, contudo seu comportamento sempre foi o de uma pessoa completamente entediada com o que ocorria à sua volta. Com o passar do tempo o tédio cede lugar a uma crescente irritação por causa das mágicas que aconteciam o tempo todo, independente de sua vontade. Por isso, tenta se matar diversas vezes mas a cada tentativa acontece alguma mágica que impossibilita o suicídio. Já desesperado, o protagonista só consegue encontrar uma "espécie de morte" quando se torna funcionário público, no entanto, ele não morre de fato mas a vida burocrática põe fim até às mágicas aumentando ainda mais seu desconsolo. No final do conto, o ex-mágico chega a sentir saudades de sua antiga condição e se sente arrependido por não ter criado "todo um mundo mágico" quando podia. 
O elemento fantástico se estabelece nesse conto restrito à perspectiva do personagem narrador e consequentemente à do leitor. O fato de ele ser visto como um mágico pelos outros personagens desvia da perspectiva desses a impressão do fantástico. A situação insólita vivida pelo protagonista do conto se encaixa perfeitamente à definição da autora alemã Olga Reimann : "O herói sente contínua e distintamente a contradição entre os dois mundos, o do real e o do fantástico, e ele próprio fica espantado diante das coisas extraordinárias que o cercam". No caso do conto em questão, o protagonista não sente exatamente espanto diante dos fatos fantásticos em virtude do estado psicológico de apatia que ele vive, e que, inclusive, tem uma significação importante para a interpretação geral do conto, mas ele sabe de qualquer forma que aquele é um fato extraordinário. 
Existe por parte do leitor a hesitação entre duas possibilidades, a de interpretar o fato pelas leis naturais, considerando-o um caso de loucura, ou a de interpretá-lo como um evento sobrenatural. Nesse ponto é necessário que se introduza uma observação, pois ao abordarmos o conto pela perspectiva do leitor nos deparamos com uma outra ameaça aos limites do fantástico que se situa no nível da interpretação de texto, fazendo a devida distinção entre a linguagem alegórica e a poética. 
Alguns elementos sobrenaturais, como animais falantes, em um texto narrativo não causam espanto ao leitor porque não existe questionamento quanto a veracidade do fato, ele entende o sentido da fala dos animais como algo natural inserido no universo daquela narrativa. Essa maneira de ler é considerada uma interpretação alegórica. A outra possibilidade é a de se fazer uma leitura poética, dissipando da mesma forma as características do fantástico. Nessa hipótese, o fato fantástico estaria presente como um recurso expressivo verbal, uma linguagem apenas representativa do real. 
Excetuando-se essas duas possibilidades de leitura mencionadas, a alegórica e a poética, e voltando para o momento da narrativa em que nos encontramos diante da dúvida entre interpretar um fato extraordinário como sobrenatural ou não, chegamos a um outro limite do fantástico, onde acaba o fantástico e começa o que pode ser considerado um gênero "estranho" ou "maravilhoso". 
No conto O ex-mágico da Taberna Minhota, o fantástico não chega se romper pois até o final da narrativa permanece a inquietação e hesitação do leitor com relação à natureza dos fatos extraordinários. Sendo assim, é possível considerá-lo um texto que representa perfeitamente o gênero fantástico pois apresenta as características que determinam esse gênero sem ultrapassar seus frágeis limites conceituais. 
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COMENTÁRIO de Marici da Silveira, pós-graduada em Literatura Contemporânea e professora de Técnicas de Redação. (fonte: Revista Etcetera - http://www.revistaetcetera.com.br) 


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