16 de fevereiro de 2012

Moacyr Scliar. No retiro da figueira.


Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranqüilo, um dos últimos locais – dizia o anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons cinqüenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homens fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe deles, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; e quando uma amiga nossa foi violentada por dois marginais, minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se – como dizia o texto – num novo estilo de vida.
Não fomos os primeiros a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário; entre nossa primeira visita e a segunda – uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.

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Comentário do conto No Retiro da Figueira, de Moacyr Scliar


No Retiro da Figueira, de Moacyr Scliar, temos um narrador-personagem que narra a malfadada experiência da sua família e de outras famílias que acalentaram o sonho de residirem em um condomínio fechado que tem o mesmo nome do título ao conto.
O medo da violência e a conseqüente insegurança das famílias que vivem nos grandes centros urbanos, encontram a solução na possibilidade de mudarem-se para um condomínio seguro, anunciado através de um prospecto publicitário. Tal prospecto, eivado de sedutoras descrições do espaço atiçou as expectativas de vida tranqüila: imagens de casas sólidas e bonitas, gramados, parques, pôneis, lago, campo de aviação, árvores, pássaros e um sistema de segurança desenvolvido com alta tecnologia. Um verdadeiro paraíso.
Vale salientar que este prospecto é de suma importância, na medida em que foi através dele que as pessoas tomaram conhecimento da existência do Retiro da Figueira e se interessam em ir até o seu endereço para conhecerem as instalações, com vistas a adquirirem, imediatamente, uma residência, pois em poucos dias todas as unidades estariam vendidas. Na chegada ao local, os candidatos a compradores e, em seguida, moradores do imóvel, comprovavam a fidelidade das imagens do prospecto, além de constatarem a gentileza e a solicitude dos guardas.
Instalaram-se na nova residência e, ao longo de mais de um mês, fruíram as maravilhas anunciadas no prospecto. Tudo estava sendo como o prometido. Todavia, a partir deste período de vida paradisíaca, começam as vicissitudes dos moradores do condomínio. A primeira decepção veio com a sirene de alarme disparando a tocar e os condôminos sendo mandados para o salão de festas, destinado para a concentração de todos em caso de emergência, onde durante quatro dias, ficaram confinados.
Ao cabo dos quatro dias, um avião pousou no campo de aviação e dele desceu um homem com uma maleta que entrega aos guardas. Em seguida, eles partem junto com o avião e com o dinheiro pago pelo resgate dos moradores seqüestrados do Retiro da Figueira. Assim, de felizes habitantes de um paraíso, todos passam, arbitrariamente, à condição de vítimas de uma armadilha e reféns, confirmando a desconfiança inicial do narrador. Assim, o que parecia a solução dos problemas vai se tornando o problema maior.
Os indícios que alimentariam, no desfecho, o grande acontecimento insólito gradativamente vão se manifestando: os prospectos foram enviados a pessoas selecionadas, as pessoas eram sempre sorridentes e prestativas. Até que no fim da narrativa as famílias não saem do condomínio, por ordens de segurança. Só então, eles descobrem que caíram numa armadilha, foram seqüestrados e estão presos no Retiro da Figueira que, por ironia da sorte, proporcionou a todos exatamente o que tanto temiam no grande centro urbano em que viviam.
“Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo que estão gozando o dinheiro pago pelo nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais aos nosso – que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais.

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Zenóbia Collares Moreira Cunha

10 de fevereiro de 2012

Murilo Rubião. O Edifício.


Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei.(Miquéias,VII, 11) 

"Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de"vagas experiências de outra escola de concretagem". Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices. 

A LENDA. Ao engenheiro responsável, recém-contrarado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia. Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia. Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. 
Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, 
conseqüentemente, o malogro definitivo do empreendimento. No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranqüilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu: — Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último. 

A ADVERTÊNCIA A mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito. 

A COMISSÃO João Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia. Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões entre os assalariados. A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranqüilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas. De cinqüenta em cinqüenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

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COMENTÀRIO do conto O Edifício, de Murilo Rubião.


Narrativa metapoética que pode ser lida como uma alegoria do ato criador. 

Os recursos murilianos para a instauração do fantástico nesse conto são, basicamente, três: 

1) Ruptura do princípio de causalidade, ou seja: ocorrem “causas” que não produzem o efeito esperado (resultando na imprevisibilidade). 

Apresenta-se uma causa suficiente para produzir determinado efeito. Este, contudo, não apenas é omitido do encadeamento narrativo, como é substituído por outro que lhe é diametralmente oposto. Isto resulta em uma situação de imprevizibilidade, como observa-se nesse conto, no qual o engenheiro –chefe tenta inutilmente convencer os operários da conveniência de paralizarem os trabalhos de construção. O seu discurso que, de início, revela-se apenas ineficaz, termina por produzir um efeito exatamente contrário ao que ele pretendia. 

2) A redundância ou reiteração. Esse recurso aparece com vigor nesse conto. A redundância ou reiteração de uma situação idêntica, “ad infinitum”, confere unidade à ação. 

3) Hiperbolização. Este recurso se manifesta na construção ilimitada de um prédio que, na verdade, não tem finalidade prática, como seria de esperar. 

Nelly Novaes Coelho chama a atenção para a fatalidade que arrasta as personagens murilianas para as dores do mundo, tal como ocorre em muitas passagens do Antigo Testamento. 

Essa condenação pertence, por exemplo, o desespero agônico do personagem em O Edifício, frente ao imperativo de um fazer eterno, verdadeira alegoria da torre de Babel nos nossos tempos: um insensato trabalho de construção. Sem nenhum sentido, mas condenado a se prolongar por um tempo indeterminado.