17 de maio de 2012

Alfredo, conto de Murilo Rubião.


“Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de Jacó.”
(Salmos 23,6)

Cansado eu vim, cansado eu volto. A nossa primeira desavença conjugal surgiu quando a fera ameaçou descer o vale. Joaquina, a exemplo da maioria dos habitantes do povoado, estava preocupada com os estranhos rumores que vinham da serra,
Inicialmente pretendeu incutir-me uma tola superstição. Ri-me da sua crendice: um lobisomem?! Era só o que faltava!
Ao verificar que ela não gracejava e se punha impaciente com o meu sarcasmo, quis explicar-lhe que o sobrenatural não existia. Os meus argumentos não foram levados a sério: ambos tínhamos pontos de vista bastante definidos e irremediavelmente antagônicos. 
Com o passar dos dias, os gemidos do animal tornaram-se mais nítidos e minha mulher, indignada com o meu ceticismo, praguejava.
Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinha uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas.
Esperei, por algum tempo, que a fera abandonasse o seu refúgio e viesse ao nosso encontro. Como tardasse, saí à procura, ignorando os protestos de minha esposa e as ameaças de romper definitivamente comigo, caso eu persistisse nos meus propósitos.
Iniciara a excursão ao amanhecer. Pela tarde, depois de estafante caminhada, encontrei o animal.
Nenhum receio me veio ao defrontá-lo. Ao contrário, fiquei comovido, sentindo a ternura que emanava dos seus olhos infantis.
Sem fazer qualquer movimento agressivo, de vez em quando levantava a cabeça -  pequenina e ridícula – e gemia. Quase achei graça no seu corpo desajeitado de dromedário.
O riso brincou frouxo dentro de mim e não aflorou aos lábios, que se retorceram de pena.
Com muito cuidado para não assustá-lo, fui me aproximando. Uma pequena distância nos separava e, tímido, perguntei o que desejava de nós e a quem dirigia a sua desalentadora mensagem. Nada respondeu. Não me dei por vencido ante o seu silêncio. Insisti com mais vigor:
-De onde veio? Por que não desceu no povoado ? Eu o esperava tanto!
O meu constrangimento aumentava à medida que renovava inutilmente as perguntas. Em dado momento, vendo que falava em vão, perdi a paciência:
-E o que faz aí, plantado como um idiota no cimo desta montanha?
Parou de gemer e fitou-me com indisfarçável curiosidade. Em seguida, sem tirar o chapéu, murmurou:
-Bebo água.
A frase, pronunciada com dificuldade, numa voz cansada, cheia de tédio, desvendou-me o sentido da mensagem. 
Na minha frente estava o meu irmão Alfredo, que ficara para trás, quando procurei em outros lugares a tranqüilidade que a planície não me dera.
Tampouco eu viria encontrá-la no vale. Por isso vinha buscar-me.
Depois de beijar a sua face crespa, de ter abraçado o seu pescoço magro, enlacei-o com uma corda. Fomos descendo, a passos lentos, em direção à aldeia.
Atravessamos a rua principal, sem que ninguém assomasse à janela, como se a chegada do meu irmão fosse um acontecimento banal. Ocultei a revolta e levei-o pela ruazinha mal calçada que nos conduziria à minha residência. Joaquina nos aguardava no portão. Sem trocarmos sequer uma palavra, afastei-a com o braço. Contudo, ela voltou ao mesmo lugar. Deu-me um empurrão e disse não consentir em hospedar em nossa casa semelhante animal.
-Animal é a vó. Este é meu irmão Alfredo. Não admito que o insulte assim.
-Já que não admite, sumam daqui os dois!
Alfredo, que assistia à nossa discussão com total desinteresse, entrou na conversa, dando um aparte fora de hora:
-Muito interessante. Esta senhora tem dois olhos: um verde e outro azul.
Irritada com a observação, Joaquina deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça.
Tive ímpetos de espancar minha mulher, mas meu irmão se pôs a caminhar vagarosamente, arrastando-me pela corda que eu segurava nas mãos.
Ao anoitecer, encontramo-nos novamente no alto da serra. Lá embaixo, pequenas luzes indicavam a existência do povoado. A fome e o cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o meu passado se desenrolasse, penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal.
(-Joaquim Boaventura, filho de uma égua! – As mãos grossas enormes, avançaram para o meu pescoço. Deixei cair o pedaço de mão que roubara e esperei, apavorado, o castigo.)
Filho de uma égua. Como tinha sido ilusória a minha fuga da planície, pensando encontrar a felicidade do outro lado das montanhas. Filho de uma égua!
Alfredo pediu-me que descansássemos um pouco. Sentou-se sobre as pernas e deixou que eu lhe acariciasse a cabeça.
Também ele caminhara muito inutilmente. Porém, na sua fuga, fora demasiado longe, tentando isolar-se, escapar aos homens, ao passo que eu apenas buscara no vale uma serenidade impossível de ser encontrada.
De início, Alfredo pensou que a solução seria transformar-se num porco, convencido da impossibilidade de conviver com seus semelhantes, a se entredevorarem no ódio. Tentou apaziguá-los e voltaram-se contra ele.
Transformado em porco, perdeu o sossego. Levava o tempo fossando o chão lamacento. E ainda tinha que lutar com os companheiros, sem que, para isso, houvesse um motivo relevante.
Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê? Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu transmudar-se no verbo resolver.
E o porco se fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável.
Entretanto, o verbo resolver é, obviamente, a solução dos problemas, o remédio dos males. Nessa condição, não teve descanso, resolvendo assuntos, deixando de solucionar a maioria deles. Mas, quando lhe pediram que desse um jeito em mais uma briga familiar, recusou-se:
-Isso é que não!
E transformou-se em dromedário, esperando que beber água o resto da vida seria um ofício menos extenuante.
A madrugada ainda nos encontrou no alto da serra. Espiei pela última vez o povoado, sob a névoa da garoa que caía. Perdera mais uma jornada ao procurar nas montanhas refúgio contra as náuseas do passado. De novo, teria que peregrinar por terras estranhas. Atravessaria outras cordilheiras, azuis como todas elas. Alcançaria vales e planícies, ouvindo rolar as pedras, sentindo o frio das manhãs sem sol. E agora sem a esperança de um paradeiro.
Alfredo, enternecido com a melancolia que machucava os meus olhos, passou de leve na minha face a sua áspera língua. Levantando-me, puxei-o pela corda e fomos descendo lentamente a serra.
Sim. Cansado eu vim, cansado eu volto.

Comentário do conto Alfredo, de Murilo Rubião



O conto de Murilo Rubião caracteriza-se pela ausência de uma atitude de espanto diante de fatos que se consideraria como imprevisto. “Alfredo” é o nome do personagem que se metamorfoseia em um dromedário, sem causar perplexidade nos moradores da vila. Estes banalizam a presença do estranho animal e, em lugar de espantados, ficam indiferentes, não se sentem ameaçados ou incomodados pela exótica criatura.
Alfredo, personagem e irmão do narrador, é quem se sente incomodado com a forma de vida entre seus semelhantes, pautada na intolerância, na violência e na animosidade. Por isso, opta por tornar-se outra coisa sem nenhum parentesco com o humano. 
A metamorfose é mais um artifício empregado pelo escritor para criticar o homem moderno. Todavia, esta não tem a pretensão de responder ou resolver as questões e os problemas do mundo. Apenas constrói enigmas que conduzem à reflexão do real. 
A metamorfose, nesse conto, tem o sentido de degradação, de impotência do homem diante do mundo brutal, revelando-o como um ser que não se compreende e, por mais que se esforce, não consegue escapar a sua insatisfatória condição de vida. O absurdo, portanto, não resulta do sobrenatural presente no texto, mas da própria realidade.
Vemos a personagem Alfredo passando pelas mais diversas transformações, num jogo de metamorfoses tão natural que nenhum espanto provoca em seu irmão que assiste a tudo. O que fica evidenciada no conto é a subversão da realidade cotidiana, própria do “realismo fantástico”, gênero introduzido no Brasil por Murilo Rubião.
Considerando que o fantástico, como afirma Tzvetan Todorov em Introdução à Literatura Fantástica, “... permite franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre.” Ou ainda que “... a função do sobrenatural é subtrair o texto à ação da Lei e com isso mesmo transgredi-la.”
Nestes termos, o fantástico é utilizado como meio de burlar a censura e se constitui em estratégia de crítica aos desconcertos do mundo.
No conto “Alfredo” temos a presença de elementos textuais que sugerem um tom de denuncia à realidade política no período ditatorial militar. Murilo utiliza-se habilmente da sutileza e da capacidade critica do fantástico para ludibriar os mecanismos de censura do período, para denunciar os abusos cometidos pelos militares contra a sociedade civil que discordava do regime imposto: “Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinham uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas”, diz o narrador.
Fica explícita nesta mensagem a denúncia da tortura praticada pelo regime ao se referir à “dor de carnes crivadas por agulhas”. Em outro momento do conto, o narrador informa que Joaquina esbofeteia o dromedário: “deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça”. Esse tipo de agressão física era comumente praticada pelos comandados do regime militar que viam a violência e a humilhação como atividades normais conterá os discordantes, considerados 'baderneiros'.
Assim, a tortura praticada nos porões e prédios militares durante o regime militar, quando não provocava a morte das vítimas, acabava deixando seqüelas físicas e psicológicas no torturado. Daí a perda de lembranças do seu passado, ensombrado pelos traumas dolorosos que fragmentaram e dispersaram algumas vivências mais difíceis de serem lembradas. O trecho seguinte caracteriza a angústia veiculadas pelos flasches da memória:
 “A  fome e o  cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o  meu passado de  desenrolasse,  penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal”. 
O realismo fantástico em Murilo Rubião é, de fato, uma estratégia da crítica, um veículo inteligentemente usado pelo autor para expressar a sua náusea pelos desconcertos do mundo seu contemporâneo.