17 de maio de 2012

Comentário do conto Alfredo, de Murilo Rubião



O conto de Murilo Rubião caracteriza-se pela ausência de uma atitude de espanto diante de fatos que se consideraria como imprevisto. “Alfredo” é o nome do personagem que se metamorfoseia em um dromedário, sem causar perplexidade nos moradores da vila. Estes banalizam a presença do estranho animal e, em lugar de espantados, ficam indiferentes, não se sentem ameaçados ou incomodados pela exótica criatura.
Alfredo, personagem e irmão do narrador, é quem se sente incomodado com a forma de vida entre seus semelhantes, pautada na intolerância, na violência e na animosidade. Por isso, opta por tornar-se outra coisa sem nenhum parentesco com o humano. 
A metamorfose é mais um artifício empregado pelo escritor para criticar o homem moderno. Todavia, esta não tem a pretensão de responder ou resolver as questões e os problemas do mundo. Apenas constrói enigmas que conduzem à reflexão do real. 
A metamorfose, nesse conto, tem o sentido de degradação, de impotência do homem diante do mundo brutal, revelando-o como um ser que não se compreende e, por mais que se esforce, não consegue escapar a sua insatisfatória condição de vida. O absurdo, portanto, não resulta do sobrenatural presente no texto, mas da própria realidade.
Vemos a personagem Alfredo passando pelas mais diversas transformações, num jogo de metamorfoses tão natural que nenhum espanto provoca em seu irmão que assiste a tudo. O que fica evidenciada no conto é a subversão da realidade cotidiana, própria do “realismo fantástico”, gênero introduzido no Brasil por Murilo Rubião.
Considerando que o fantástico, como afirma Tzvetan Todorov em Introdução à Literatura Fantástica, “... permite franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre.” Ou ainda que “... a função do sobrenatural é subtrair o texto à ação da Lei e com isso mesmo transgredi-la.”
Nestes termos, o fantástico é utilizado como meio de burlar a censura e se constitui em estratégia de crítica aos desconcertos do mundo.
No conto “Alfredo” temos a presença de elementos textuais que sugerem um tom de denuncia à realidade política no período ditatorial militar. Murilo utiliza-se habilmente da sutileza e da capacidade critica do fantástico para ludibriar os mecanismos de censura do período, para denunciar os abusos cometidos pelos militares contra a sociedade civil que discordava do regime imposto: “Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinham uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas”, diz o narrador.
Fica explícita nesta mensagem a denúncia da tortura praticada pelo regime ao se referir à “dor de carnes crivadas por agulhas”. Em outro momento do conto, o narrador informa que Joaquina esbofeteia o dromedário: “deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça”. Esse tipo de agressão física era comumente praticada pelos comandados do regime militar que viam a violência e a humilhação como atividades normais conterá os discordantes, considerados 'baderneiros'.
Assim, a tortura praticada nos porões e prédios militares durante o regime militar, quando não provocava a morte das vítimas, acabava deixando seqüelas físicas e psicológicas no torturado. Daí a perda de lembranças do seu passado, ensombrado pelos traumas dolorosos que fragmentaram e dispersaram algumas vivências mais difíceis de serem lembradas. O trecho seguinte caracteriza a angústia veiculadas pelos flasches da memória:
 “A  fome e o  cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o  meu passado de  desenrolasse,  penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal”. 
O realismo fantástico em Murilo Rubião é, de fato, uma estratégia da crítica, um veículo inteligentemente usado pelo autor para expressar a sua náusea pelos desconcertos do mundo seu contemporâneo.


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