12 de junho de 2012

Sophia de Mello Breyner Andresen: O Jantar do Bispo

A casa era grande, branca e antiga. Em sua frente havia um pátio quadrado. À direita um laranjal onde noite e dia corria uma fonte. À esquerda era o jardim de buxo, úmido e sombrio, com suas camélias e seus bancos de azulejo.
A meio da fachada descia uma escada de granito coberta de musgo. Em frente dessa escada, do outro lado do pátio, ficava o grande portão que dava para a estrada.
A parte de trás de casa era virada ao poente e das suas janelas debruçadas sobre pomares e campos via-se o rio que atravessa a várzea verde e viam-se ao longe os montes azulados cujos cimos, em certas tardes, ficavam roxos.
Nas vertentes cavadas em socalco crescia a vinha. Era ali a terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra, o gelo do Inverno, a doçura da Primavera e o fogo dos Estios. E dizia-se que o vinho daquelas encostas, como um bom poema, nunca envelhecia. À direita, entre a várzea e os montes, crescia a mata, a mata carregada de murmúrios e perfumes e que os Outonos tornavam doirada.
Mas agora era Inverno, um duro Inverno desolado e frio, e o vento desfazia o fumo azul que subia das pequenas casas pobres. Os caminhos estavam cobertos de lama. Um longo soluço parecia correr pelas estradas.
O Dono da Casa estava de pé, encostado à lareira acesa na sala grande, rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos. Estava calado, alheio à conversa: meditava, pesava as suas razões, defendia em frente de si próprio a sua causa e a sua justiça. Faltava o último convidado, que era o Bispo.
O Dono da Casa tinha um pedido a fazer ao Bispo. Fora mesmo por isso que o convidara para jantar. E era por isso que, enquanto o esperava, ele meditava e preparava os argumentos da sua razão.
De facto, ali, naquelas terras de sossego, naqueles domínios submissos onde ele e seu pai e seus avós tinham exercido uma autoridade indiscutida, ali onde antes sempre reinara a ordem, tinha surgido agora uma semente de guerra.
Esta semente de guerra era o padre novo, um jovem padre de sotaina rota e cabelo ao vento, pároco de Varzim, pequena aldeia miserável onde moravam os cavadores da vinha. Havia muito tempo que Varzim era pobre e sempre cada vez mais pobre, e havia muito tempo que os párocos de Varzim aceitavam com paciência, sempre com mais paciência, a pobreza dos seus paroquianos. Mas este novo padre falava duma justiça que não era a justiça do Dono da Casa. E parecia ao Dono da Casa que, dia após dia, semana após semana, mês após mês, a sua presença ia crescendo como uma acusação que o acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o tocava. E ali na sua casa cujos donos tinham sido de geração em geração símbolo de honra, virtude, ordem e justiça, parecia-lhe agora que cada gesto do Padre de Varzim o chamava a julgamento para responder pelos tuberculosos cuspindo sangue, pelos velhos sem sustento, pelas crianças raquíticas, pelos loucos, os cegos e os coxos pedindo esmola nas estradas.
Finalmente surgira uma questão de contas com um caseiro e o Abade de Varzim tomara a defesa do caseiro.
— Padre — dissera o Dono da Casa —, eu pensava que o seu ofício era ocupar-se de rezas e não de contas. Os problemas morais pertencem-lhe. Os problemas práticos são comigo. Peço-lhe que deixe César ocupar-se do que é de César. Eu na sua igreja não mando: só assisto e apoio. O problema que estamos a discutir é meu, é do mundo, é um problema material e prático.

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Comentário do conto O Jantar do Bispo, de Sophia de Mello B. Andresen


Cada conto de Sophia M. B. Andresen, a coletânea “Contos Exemplares”, ilustra uma moralidade que reflete uma filosofia da existência.
A partir da situação inicial, a narradora desenvolve uma narrativa que aponta para valores éticos, econômicos e religiosos. A chegada do Bispo, do Homem Importante, do pobre e o desaparecimento misterioso destes dois últimos, conotado com as forças do Mal e do Bem,
Configuram o “fantástico” em O Jantar do Bispo.
Na primeira parte do conto, uma descrição começa por delimitar um espaço físico constituído pela casa “grande, branca e antiga”, triplamente definida por características materiais (o tamanho, a cor) e por características temporais (antiga).

A descrição minuciosa da casa dá conta de todos os seus ângulos:

(1) Em “frente da casa, um pátio quadrado”;

(2) À direita, um laranjal onde corria uma fonte;

(3) À esquerda, um jardim de bucho, úmido e sombrio, com suas camélias e seus bancos de azulejo

(4) A meio da fachada descia uma escada de granito coberta de musgo. Notar que o musgo se associa à noção de tempo, de coisa antiga;

(5) Em frente da escada ficava o gradeado pórtico que dava para a estrada. O portão é o elemento de transição entre a casa e o mundo.

Em seguida, a narradora passa a descrever o exterior, a natureza. Neste quadro a sua atenção concentra-se na VINHA, que produz uma anotação social, a qual permite definir o espaço exterior como uma antítese entre o mundo dos ricos (definido por regras estéticas – a casa - e o mundo dos pobres, referido pelo trabalho (a vinha).
Outra antítese se coloca na página 52: “Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho”, que contrasta a divisão social que caracteriza o cenário.” (Frase esta que pode ser uma alusão: quanto mais pobre fica o que cultiva a terra e planta a vinha, mais rico se torna o dono do vinho).
O contraste entre a exuberância da natureza é reforçado logo a seguir pela confrontação de dois tempos, introduzida pela adversativa MAS e pelo adjetivo AGORA:
“Mas agora era Inverno, um duro Inverno desolado e frio e o vento desfazia o fumo azul que subia das pequenas casas pobres. Os caminhos estavam cobertos de lama. Um longo soluço parecia correr pelas estradas.
Enquanto a descrição exterior não focaliza os seres humanos, a descrição interior vai pôr em evidência o DONO DA CASA (símbolo da autoridade e por isso designado através de uma apelação genérica): 
“O DONO DA CASA estava de pé, encostado à lareira acesa na sala grande, rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos”. Nesta breve apresentação predominam sinais de conforto (a lareira acesa), de autoridade (o Dono da casa ocupava a posição central) e de proximidade (a família, os vizinhos). No entanto a personagem está inquieta, expectante. Aguardava a chegada do Bispo a quem tinha um pedido a fazer: a transferência do padre novo que, ao contrário dos seus antecessores, falava de uma justiça que não era a justiça do Dono da Casa. Tal transgressão transformava-se em uma ameaça. Torna-se clara a oposição entre o Dono da casa e o Padre de Varzim. A chegada do jovem padre de sotaina rota e cabelo ao vento, capaz de transgredir a ordem estabelecida, tomando a defesa dos pobres contra o patrão habituado a mandar e a possuir, incomodava demais o Dono da Casa.
As duas personagens antagônicas caracterizam-se por atitudes, valores e práticas completamente diferentes:
O DONO DA CASA reclama o respeito pela ordem, que o protege nas suas prerrogativas, e situa-se no plano material.
O PADRE DE VARZIM situa-se no plano do espiritual e reclama a caridade.
Ambos evocam a Justiça, mas em nome de princípios contrários, o que conduz inevitavelmente ao conflito.
A prática do Dono da Casa aflora-se na expressão das aparências, visto que as suas atitudes visam produzir efeito imediato: manter a sua autoridade na aldeia. No seu nome tudo obedece a uma hierarquia: o lugar dos miseráveis ficava um pouco abaixo do dos criados, um pouco acima do dos cães..
O interior da casa corresponde ao valor que o Dono da Casa dá as aparências: “móveis pomposos, falsos dourados, tinham sido acrescentados às antigas mobílias escuras”. O novo riquismo se traduz por uma acumulação excessiva de tapetes, cortinas complicadas, retratos dos da casa que contrastavam com o dos seus antepassados.
O discurso da narradora ironiza não só o gosto das aparências como o gosto da autocontemplação do Dono da Casa.
O dono da Casa arma tudo de maneira a ter sucesso em sua empresa de afastar o padre indesejado. No entanto, a caracterização das duas personagens em contraste e em conflito sugere uma luta em que se enfrentam os valores negativos do Dono da Casa e os valores positivos do Padre, Simbolicamente, esta oposição equivale a uma batalha entre o MAL e o BEM cuja solução se encontra na futura atitude do Bispo. Este é o elemento fundamental na dinamização da intriga.
O Bispo está numa situação paralela à do Dono da Casa: tem também um pedido a fazer: o teto da igreja. A estratégia do Bispo é estimular a vaidade do Dono da Casa.
Quando a intriga começa a avançar para a conversa entre o Dono da casa e o Bispo um novo acontecimento intervêm: A chegada estrondosa e estranha do HOMEM IMPORTANTE.
Somente o menino de 9 anos rejeita o visitante (encarnação do diabo): “a sombra daquele homem era enorme e enchia os tetos”. Mas isso era uma coisa que somente a criança via.. O discurso moralizante dom hábil visitante ajuda ao Dono da Casa e ao Bispo a formularem os seus pedidos e a concretizarem os seus desejos.
A resolução da intriga converge para a concretização dos objetivos de ambos, graças às argumentações do Homem Importantíssimo, que funcionou como um hábil advogado. Dois cheques de 50 contos selaram o negócio que garantiu o teto novo para a igreja e a “venda” do Padre de Varzin.
Enquanto isto, na cozinha da casa vem bater um pobre que quer ver o Dono da Casa e enfrenta a recusa dos criados. Ele vinha da parte do Padre de Varzim. A cada negativa dos criados, a tempestade violenta aumenta, como um coro trágico que pontua os diversos movimentos narrativos e reflete simbolicamente a cólera Divina. A cada negativa dos criados, a tempestade ribombava e as luzes se apagavam. O menino gostou do mendigo e o atendeu. Joana serviu um prato ao mendigo. Este não o comeu e foi embora.
No entanto, o espírito do Bispo estava pesado de confusão; quando retornou à estrada a caminho de sua casa, provocando a piedade de Deus. A partir daí inicia-se o desencadeamento do mistério e dos fenômenos fantásticos: O aparecimento do mendigo na estrada e recebe um convite do Bispo para seguir de carro e que, subitamente desapareceu, a tomada de consciência do Bispo do erro cometido e o seu retorno à mansão do Dono da casa para desfazer o negócio, o inexplicável desaparecimento do Homem Importante, o misterioso desaparecimento do cheque que este dera ao Bispo, além das tempestades e visões do menino, tudo apontando para a presença de fenômenos sobrenaturais.


5 de junho de 2012

Os Cavalinhos de Platiplanto, de J. J. Veiga

O meu primeiro contato com essas simpáticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criança. O meu avô Rubem havia me prometido um cavalinho de sua fazenda do Chove-Chuva se eu deixasse lancetarem o meu pé, arruinado com uma estrepada no brinquedo do pique. Por duas vezes o farmacêutico Osmúsio estivera lá em casa com sua caixa de ferrinhos para o serviço, mas eu fiz tamanho escarcéu que ele não chegou a passar da porta do quarto. Da segunda vez meu pai pediu a seu Osmúsio que esperasse na varanda enquanto ele ia ter uma conversa comigo. Eu sabia bem que espécie de conversa seria; e aproveitando a vantagem da doença, mal ele caminhou para a cama eu comecei novamente a chorar e gritar, esperando atrair a simpatia de minha mãe e, se possível, também a de algum vizinho para reforçar.
Por sorte vovô Rubem ia chegando justamente naquela hora. Quando vi a barba dele apontar na porta, compreendi que estava salvo pelo menos por aquela vez; era uma regra assentada lá em casa que ninguém devia contrariar vovô Rubem. Em todo caso chorei um pouco mais para consolidar minha vitória, e só sosseguei quando ele intimou meu pai a sair do quarto.
Vovô sentou-se na beira da cama, pôs o chapéu e a bengala ao meu lado e perguntou por que era que meu pai estava judiando comigo. Para impressioná-lo melhor eu disse que era porque eu não queria deixar seu Osmúsio cortar o meu pé. Cortar fora? Não era exatamente isso o que eu tinha querido dizer, mas achei eficaz confirmar; e por prudência não falei, apenas bati a cabeça.
—Mas que malvados! Então isso se faz? Deixa eu ver.
Vovô tirou os óculos, assentou-os no nariz e começou a fazer um exame demorado de meu pé. Olhou-o por cima, por baixo, de lado, apalpou-o e perguntou se doía. Naturalmente eu não ia dizer que não, e até ainda dei uns gemidos calculados. Ele tirou os óculos, fez uma cara muito séria e disse:
—É exagero deles. Não é preciso cortar. Basta lancetar. Ele deve ter notado o meu desapontamento, porque explicou depressa, fazendo cócega na sola do meu pé:
—Mas nessas coisas, mesmo sendo preciso, quem resolve é o dono da doença. Se você não disser que pode, eu não deixo ninguém mexer, nem orei. Você não é mais desses menininhos de cueiro, que não têm querer. Na festa do Divino você já vai vestir um parelhinho de calça comprida que eu vou comprar, e vou lhe dar também um cavalinho pra você acompanhar a folia.
—Com arreio mexicano?
—Com arreio mexicano. Já encomendei ao Felipe. Mas tem uma coisa. Se você não ficar bom desse pé, não vai poder montar. Eu acho que o jeito é você mandar lancetar logo.
—E se doer?
—Doer? É capaz de doer um pouco, mas não chega aos pés da dor de cortar. Essa sim, é uma dor mantena. Uma vez no Chove-Chuva tivemos que cortar um dedo —só um dedo— de um vaqueiro que tinha apanhado panariz e ele urinou de dor. E era um homem forçoso, acostumado a derrubar boi pelo rabo.
Meu avô era um homem que sabia explicar tudo com clareza, sem ralhar e sem tirar a razão da gente. Foi ele mesmo que chamou seu Osmúsio, mas deixou que eu desse a ordem. Naturalmente eu chorei um pouco, não de dor, porque antes ele jogou bastante de lança-perfume, mas de conveniência, porque se eu mostrasse que não estava sentindo nada eles podiam rir de mim depois.

Comentário de Cavalinhos de Platiplanto.

Na narrativa “Os cavalinhos de Platiplanto”, o espaço do sonho se torna o local onde as frustrações podem ser atenuadas e os desejos realizados já que em suas próprias vidas isso não é possível. No conto, o sonho do narrador realiza o desejo que ele tinha de receber o cavalinho prometido por seu avô aparece de modo realizado. No sonho, o narrador toma conhecimento de tal concretização. Vale salientar que é a tensão com a família que aproxima o menino do avô, e este estando do lado da fantasia, remete para o sonho. Todavia, o pensamento mágico é o da infância, e em Veiga, só a criança habita esse espaço mágico – espaço do sonho. Criança transita livremente do real para a fantasia e vice-versa. Já o adulto é preso ao real, não consegue sequer compreender o que está fora do saber real.

O sonho do garoto se inicia com a ida dele a uma fazenda nova e desconhecida. O espaço se apresenta como um lugar novo, reelaborado, idealizado pelo inconsciente, totalmente diferente dos locais que o sonhador está acostumado a freqüentar. Aliás, como é comum nos sonhos. Por isso, a chegada a esse local é feita por uma ponte que não era de atravessar, mas de subir. Ele recebe a tarefa de terminar a ponte e a cumpre. Pronta a ponte, o menino desce pelo outro lado, onde encontra um menino com “medo de tocar bandolim”, e ele leva o pequeno músico a perder o medo.

É o menino do bandolim que, tocando uma toada, transporta o menino-narrador para o espaço do sonho, a fazenda, o major e o extraordinário espetáculo dos cavalinhos maravilhosos.

Findo o sonho, o menino volta ao real, e reconhece os objetos do seu quarto. Relembra o que sonhou e resolve não falar para ninguém o que vira. Sabe que poderá voltar a ver o cavalinhos pela lembrança.

Note-se que o conto se inicia com a seguinte frase: “o meu primeiro contato com essas simpáticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criança”. No entanto, já adulto, ao assumir a narração do seu sonho, sua condição de narrador permite-lhe a lembrança, a permanência no sonho que povoara a sua infância.