26 de agosto de 2012

Murilo Rubião, O Edifício,


Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei.(Miquéias,VII, 11)

"Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de "vagas experiências de outra escola de concretagem". Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.
A LENDA. Ao engenheiro responsável, recém-contrarado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia. Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia. Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados.
Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, conseqüentemente, o malogro definitivo do empreendimento. No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranqüilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu: — Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

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Comentário do conto "O Edifício", de M. Rubião.


A situação que se observa em “O edifício” é de imprevisibilidade, posto que as causas propostas não produzem o efeito esperado, para desespero do engenheiro João Gaspar, contratado na juventude para terminar um edifício de ilimitados pavimentos. Este se vê no fim da vida impotente diante do projeto absurdo que insiste em se concretizar, apesar dos seus apelos para que paralisassem os trabalhos de construção. O seu discurso, que de início revelava-se apenas ineficaz, termina por produzir um efeito exatamente contrário ao que ele pretendia:
“Fazia longos discursos e, muitas vezes, caía desfalecido de tanto falar. A princípio, os empregados se desculpavam, constrangidos por não ouvirem atentamente as suas palavras. Com o passar dos anos, habituaram-se a elas e as consideravam peça importante nas recomendações recebidas pelo engenheiro-chefe antes da dissolução do Conselho. Não raro, entusiasmados com a beleza das imagens do orador, pediam-lhe que as repetisse. João Gaspar se enfurecia, desmandava-se em violentos insultos. Mas estes vinham vazados em tão bom estilo, que ninguém se irritava. E, risonhos, os obreiros retornavam ao serviço, enquanto o edifício continuava a ganhar altura."
Temos uma causa que não funciona como princípio que suscite o efeito produzindo-se. O vazio que se abre com essa infração do princípio de causalidade já não permite determinar com precisão o encadeamento lógico dos fatos, porquanto o efeito já não resulta da eficiência da causa, mas sim como inversão radical e arbitrária da relação de causalidade, como um lance gratuito do imaginário.
Desprovido do poder e perdido num projeto que constatou ser de fato impossível, o engenheiro aos poucos se resignou a observar, com desânimo, a força invencível do prédio que teimava em subir. Mesmo as suas medidas intransigentes para interromper o trabalho, como a demissão de todos os funcionários, não impediram que eles continuassem o dever imposto por autoridades inimagináveis, trabalhando, por fim, “à noite e aos domingos, independente de qualquer pagamento adicional."
O conto se organiza como uma metáfora da lenda bíblica da Torre de Babel cuja construção teria terminado em consequência da enorme confusão gerada pela dificuldade de comunicação entre os trabalhadores que passaram a falar idiomas diferentes por terem desafiado a Lei do Senhor ao pretenderem construir uma torre que os levasse até o céu.