[Valid Atom 1.0] O Fantástico Literário na Web: setembro 2013

22 de setembro de 2013

Lygia Fagundes Teles. Seminário dos ratos...


Que século, meu Deus! - exclamaram os Ratos e começaram a roer o edifício.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:
- Excelência?
O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.- Pode entrar - disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito.
- Então? Correu bem o coquetel? Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se. Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.
- Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e - consultou o relógio - veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!
- O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta? O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde o secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.
- Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas - começou com certa hesitação. Animou-se: - A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa-forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência, escolhi este azul-pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul... Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?
O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.- É a cor deles. Rattus Alexandrius. - Dos conservadores?- Não, dos ratos. Mas, enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?
- Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires...
- Fui contra a indicação. Desse americano - atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz.
- Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos - acrescentou apontando para o pé em cima da almofada.
- Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

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Comentário do conto Seminário dos ratos

Seminário dos ratos, conto de Lygia Fagundes Telles, faz parte da coletânea de contos de mesmo nome. Neste conto a autora também rompe com a realidade e com a lógica racional, desenvolvendo uma narrativa compromissada com o fantástico..
Conto narrado em terceira pessoa, organiza-se como uma alegoria de nossas estruturas político-burocráticas. Trata-se de ratos, pequenos e temerosos roedores, numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos, que invadem e destróem uma casa recém restaurada localizada longe da cidade. Ali aconteceria um evento denominado VII Seminário dos Roedores, uma reunião de burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, tendo como assessor o Chefe de Relações Públicas. O país fictício encontra-se atravancado pela burocracia, invertendo-se a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.
O conto surge numa época na qual o Brasil atravessava um complicado momento histórico, caracterizado pela repressão política. No trabalho gráfico da capa da primeira edição do livro Seminário dos ratos, estão dois ratos segurando estandartes com bandeiras à frente de uma figura estilizada – uma espécie de monstro com coroa, um rei no trono, a ser destronado pelos animais?
O próprio nome do conto "Seminário dos ratos" já causa uma inquietação. Um seminário evoca atividade intelectual, local de encontro de estudos, possuindo etimologicamente mesma raiz de semente/sementeira – local para germinar novas idéias. Também traz uma ambigüidade: seminário no qual se discutirá a problemática dos ratos, ou seminário no qual os ratos serão participantes? Essa questão ficará em aberto ao final do conto. A narrativa é introduzida através de uma epígrafe – versos finais do poema "Edifício Esplendor" de Carlos Drummond de Andrade (1955) - da qual já emana um clima de terror, em que os ratos falam, humanizados pelo poeta: Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício. A imagem evocada por este verso já traz um efeito em si, remetendo à história de homens sem alma e a construções sem sentido, que não vale a pena conservar, condensando uma perplexidade frente a situações paradoxais daquele século surpreendente. O nome "esplendor" no título do poema é uma ironia, visto que o edifício descrito pelo poeta é pura decadência.

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