14 de novembro de 2013

Comentário do conto Marina, a Intangível, de M. Rubião.


A escrita de Murilo Rubião é polissêmica e polifônica. Mesmo com toda a concisão e praticidade almejada por ele, há uma plurissignificação discursiva em cada enredo, no qual há uma confluência de vozes e de acepções. Vamos recordar aqui o 87. “Princípio do iceberg” que citamos no primeiro capítulo desta pesquisa. Nesse princípio, Hemingway sugere que apenas uma pequena parte do conto se mostra claramente para o leitor. O restante fica “submerso”. É nessa parte submersa que encontramos a polissemia e a polifonia discursiva em Rubião. E para entender essas entrelinhas, tentamos emergir pelo menos parte desse iceberg, em cada um dos contos. 
O conto “Marina, a Intangível”, como os demais, vem introduzido pela epígrafe bíblica. Marina é a palavra-mulher antevista nessa epígrafe, extraída do livro Cântico dos Cânticos. Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, como um exército bem ordenado? (Cânticos dos Cânticos, VI, 10. In: RUBIÃO, 2006, p. 25). 
O questionamento levantado, nesse trecho bíblico, coloca-nos diante de uma encruzilhada interpretativa. Em uma via, encontramos um questionamento acerca da mulher. O pronome “quem” é próprio para pessoa e não para coisas. Além disso, o pronome demonstrativo “esta” e os adjetivos “formosa” e “escolhida” estão todos no feminino. Entretanto, em outra via, torna-se possível o entendimento da personificação da palavra a ser usada no conto que virá, e a exaltação dessa palavra que surge como a aurora, que tem força e ordenação de um exército em batalha. O fato de o trecho ter sido retirado do Cânticos dos Cânticos, livro bíblico carregado de lirismo e metáforas, permite-nos entendê-lo como sendo a glorificação da palavra, pela mediação do recurso da prosopopeia.

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Na Igreja Católica, esses versos sagrados passaram a ser atribuídos à figura de Maria. Embora eles pertençam ao Antigo Testamento e Maria seja do Novo Testamento, os versos foram facilmente adaptados para a celebração a Nossa Senhora, principalmente na Congregação chamada de “Legião de Maria”, cujo hino diz: Quem é essa que surge formosa/ como o sol fulgurante na serra/ como aurora de luz radiosa/qual exército em linha de guerra?/ É Maria a mãe legionária/ É Maria a rainha do céu/ que nos faz ser a luz missionária/ para o mundo levar até Deus...(Manual católico da Legião de Maria, 1987, p. 16). 88 
É evidente a apropriação dos versos do livro Cânticos dos Cânticos na letra do hino. É como se a Igreja Católica tivesse atribuído aos versos um caráter profético que, já no Antigo Testamento, exaltassem a futura mãe do filho de Deus. Ironicamente, Rubião, declaradamente agnóstico, apropria-se do texto sagrado, despindo-o de toda a força discursiva religiosa. Há uma evidente dessacralização da linguagem, já que o conto desconstrói a figura da “Virgem”, pela configuração como ela vem descrita. Mantém-se o andor, a procissão e o fato dela vir carregada, como se faz com as imagens nos festejos católicos. Porém, as vestes e a maquiagem destoam da imagem arquetípica do Catolicismo, uma imagem de face pálida, vestes cândidas e olhar condolente. Marina vem como uma mistura entre Maria e Eva – conforme apontamos no capítulo anterior – mas também traz muito da Lilith. Assim, vemos o celeste, o terreno e o infernal fundidos em uma só criatura. 
Isso corrobora a ideia de que Rubião não adotou exclusivamente o gênero Fantástico, mas assimilou elementos do Estranho, do Realismo Mágico e do Maravilhoso. Da mesma forma que Marina traz esse hibridismo em sua constituição, a literatura dele também se faz híbrida. De acordo com o livro do Gênesis, o mundo foi feito por mediação da palavra, ou seja, do “logos”. Antes dos filósofos, essa palavra foi traduzida do grego como sendo “verbo” ou “palavra”. Na concepção filosófica passou a ser entendida como “razão”. No texto bíblico de João encontramos: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. (Jo 1.1-4). 
Rubião utiliza o discurso bíblico – polifônico em si mesmo – e, assim como a Bíblia afirma que “o Verbo se fez carne e habitou entre os homens”, a palavra de Rubião se faz mulher e habita a narrativa. Ele, como criador, personifica-a e dá a essa palavra o poder de re-significar. E, ao mesmo tempo, ele não se ausenta, coloca-se ao lado da palavra-criatura como sendo a palavra-criadora, conforme observamos no transcursar da narrativa. 
O narrador-personagem desse conto, já nas primeiras linhas, coloca-se como ledor da Bíblia, assim como Rubião o é. “Afastei da minha frente a Bíblia e me pus à espera de alguma coisa que estava por acontecer. Certamente seria a vinda de Marina.” 89 (RUBIÃO, 2006, p. 25). Há, nessas palavras, algo de profético. Ele espera a vinda de Marina. Esse narrador-personagem é escritor. Trabalha no espaço da escrita. Porém, é um espaço formal, não espontâneo. Sendo o espaço em que ele se encontra a redação de um jornal, o processo de espontaneidade acaba sendo engolido pelas exigências da profissão. Ele é José. José Ambrózio. Na Bíblia, José é marido de Maria. Porém a esposa é intocada, “intangível”, imaculada. Gera um filho de cuja concepção José não participa, mas que, humildemente, assume como pai. No conto, o narrador afirma que Marina se chamava “Maria da Conceição”, mas que mudara de nome ao fugir com o namorado. É outro ponto em comum com a história bíblica, pois Maria também foge com José, por causa das perseguições de Herodes. O que identificamos é uma paródia do texto bíblico que aparece “maquiado” e representativo de uma outra concepção: a do texto literário. O outro nome do narrador é Ambrózio. Nome de origem grega, que significa “imortal”, é o nome de um respeitável santo católico – Santo Ambrósio Autperto – que, segundo estudos realizados pelo Papa Bento XVI, fez importante pesquisa acerca do Apocalipse e deu uma grande ênfase, em outros de seus escritos, à figura de Maria. Mesmo não sendo possível afirmar que Rubião tivesse conhecimento disso, não podemos deixar de considerar o fato do narrador-personagem ter a missão de escrever o poema à “Marina, a Intangível”, assim como o referido santo o fizera à Maria. 
Outro elemento no conto que gera a proximidade entre Marina e Maria é a revelação do narrador de que balbuciara uma prece a ela. A prece é feita a quem se dá o caráter de santidade. Ao mesmo tempo, a prece é composta de palavras, é discurso. Esse narrador se encontra, em seu ofício, às voltas com a palavra, seja ela oral, escrita ou simplesmente ausente, como quando olha a folha em branco. Para os católicos, a saudação do anjo a Maria tornou-se a principal prece a ela dirigida, a “Ave, Maria”. 
Quando, anteriormente, nessa investigação, apresentamos uma breve biografia de Rubião, citamos quanto tempo ele levou para ter os seus contos publicados. Nesse conto, o narrador constata: “Tentei ainda persuadir-me de que, escrevendo ou não, o resultado seria o mesmo. O redator-chefe nunca aproveitava, na edição do dia, os meus artigos e crônicas, nem deixava determinadas as tarefas que eu deveria cumprir.” (RUBIÃO, 2006, p. 26). Um texto é escrito com o intuito de que será lido e, para isso, precisa ser editado. Como há, no narrador, a certeza de que o texto não seria publicado, 90 esvazia-se nele a razão para escrevê-lo. E, mais uma vez, enxergamos nele o próprio Rubião. 
Durante a luta travada pelo narrador diante daquilo que precisa escrever e não consegue, recebe uma visita inesperada de um desconhecido que o chama pelo nome. O mesmo fato se dá, na Bíblia, com Maria, que recebe a inesperada visita do anjo Gabriel que a saúda “Ave, Maria”. Em ambas as histórias, o visitante se comporta como anunciador de algo importante, de uma “boa nova”. Maria se coloca como serva diante do anjo; José Ambrózio se ajoelha diante do estranho visitante. É preciso confiar na única coisa que há para se crer nas duas situações: na palavra. Estranhamente, o visitante afirma a José Ambrózio que o poema a Marina não necessita de máquina para ser impresso e o anjo afirma a Maria que ela não precisa conhecer um homem para gerar o Filho de Deus. Assim, a palavra dá origem aos dois: ao filho e ao poema. O visitante, no conto, afirma: “– Os primeiros cantos são feitos de rosas despetaladas. Lembram o paraíso antes do pecado.” (RUBIÃO, 2006, p. 31). Também na história de Maria há a constatação de que ela fora “concebida sem pecado”, mostrando-nos o quanto as duas histórias se encontram imbricadas. Nesse ponto do enredo, José Ambrózio vê a chegada de Marina em procissão. É a concretização daquilo que profetizara no início, aquilo que estava por acontecer. No entanto, Marina vem submersa em uma atmosfera onírica, semelhante a um delírio: os instrumentos soprados não emitem sons, as bocas abertas não cantam, os muros vão surgindo sobrepostos e precisam ser transpostos. A imagem de Marina no andor coberto de seda atrai o olhar – ora para os olhos, ora para as pernas à mostra entre os panos rasgados do vestido. Ela vem “escoltada” por padre e mulheres grávidas. Esse aspecto também nos chama a atenção. Misturam-se dois elementos: padres que, pela exigência da Igreja Católica, fazem o “voto de castidade”, ou seja, que não terão relações carnais com nenhuma mulher; e as mulheres que, estando grávidas, evidenciam o contato carnal com o sexo oposto. 
Ao fim de tudo, Ambrózio se vê sozinho, frente a um amontoado de papéis. O muro volta a ser único. E, recobrando a consciência, ele constata que o poema já está escrito. O delírio anterior representa o escritor diante do turbilhão de ideias e palavras que nascem na mente, no primeiro momento da escrita. Depois, o escritor sai desse “transe” e analisa racionalmente aquilo que nasceu durante o “delírio”. É o momento em que, segundo Rubião, começa o sofrimento: Cortar os excessos, destacar o que é 91 realmente bom e, num extremo, rasgar o que foi escrito, por julgar impublicável. Rubião confessa ter rasgado um amontoado de poemas manuscritos porque descobriu que não eram bons. É como se ele tivesse feito a mesma constatação de José Ambrózio, enxergando os versos como apenas “sons estúpidos”. 
Após essa análise, reafirmamos que o conto “Marina, a Intangível” é uma paródia, não de um único texto bíblico, mas de trechos extraídos de várias partes do Livro Sagrado que formam um mosaico discursivo-profano. Na Bíblia, Maria é a representação da mulher santificada, pura. No conto, Marina é a representação da mulher mundana, de pernas à mostra, numa evidente postura de sensualidade e sedução. 
Sua face maquiada a carvão contrapõe-se à imagem de candura que a Igreja Católica dá a Maria. Dessa forma, desconstrói-se o paradigma religioso da mulher-santa e cria-se um novo “perfil” da mulher do mundo contemporâneo. Vemos, em Marina, o fim da dualidade entre santa e pecadora, típica da literatura e das construções de gênero. O que detectamos em Rubião, portanto, como mudanças próprias do mundo contemporâneo, são conquistas que se desdobram ao longo do tempo, por meio dos espaços que a mulher foi – e vai – delineando na História e plantando, paulatinamente, nas lutas cotidianas. 
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Análise da autoria de JUCILENE DE LOURDES VIEIRA (METAMORFOSES, METALINGUAGEM E REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM CONTOS DE MURILO RUBIÃO. (Dissertação. WWW.cch.unimontes.br)

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