7 de junho de 2014

A Floresta em sua casa, de Maria Judite de Carvalho


Pintava a lindas cores como um velho artista do passado, que se chamava Douanier Rousseau; simplesmente, os seus bichos não eram ingênuos nem agressivos, mas perigosos. Não terríveis, não assustadores: perigosos, embora um pouco engraçados também. Espreitavam ou estavam alerta ou resfolegavam ao de leve (era como se resfolegassem) ao preparar o salto. Havia sempre folhagem a dissimulá-los, a mantê-los numa quase ilegalidade graciosa, bonitas flores bojudas, de carne rosada, a tornar por assim dizer impossível, a ridicularizar, a sua ferocidade.
Não se via o tigre a atacar o búfalo, mordendo-o já, começando a dilacerá-lo. Não. O tigre, quando tigre havia, estava meio escondido por uma das tais flores, maior do que a sua cabeça. E sentia-se que ele já avistara a presa, que a espiava, que só estava à espera da altura mais conveniente, para agir. Era um jovem leão ágil, esse a que o pintor dava os últimos retoques. Um jovem leão já sabedor, a olhar bem de frente para quem o olhava. Tinha uma grande juba redonda e escura de que só se via metade, e um corpo amarelado que à primeira vista parecia exíguo. Exíguo porque atrás de si havia um tronco de árvore em cuja largura caberiam sete leões e que servia de pano de fundo a uma amálgama de lianas, de longas folhas gordas, carnosas, de arbustos que se erguiam do chão ou que tombavam de cima, em cascata. A juba estava semi-escondida por uma dessas folhas, grande e lobada, quase vermelha, quase animal.
«Era assim a floresta?» perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber? Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos. Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, o mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro pequenos jardins de aclimatação.
Aquelas estranhas florestas eram, no entanto, as que ele imaginava. Velhas, luxuriantes florestas de há séculos, com uma vida que vinha do princípio das coisas. Florestas com túrgidas flores que nasciam, cresciam e morriam em poucas horas, que, por assim dizer, renasciam e onde o perigo espreitava por detrás de cada folha.
Os seus quadros eram muito procurados porque eram decorativos, tinham belas cores e nunca acabavam de ser vistos. Ali, estava o leão, mas, olhando melhor, procurando, avistavam-se as três corças, todas encolhidas, como que receosas, a cobra a rastejar, e mais além, confundindo-se com as lianas, a aranha carangueja. Havia também ângulos dos quais se podiam ver animaizinhos escondidos, aqui e além. Um, dois, cinco, mais?
Era um herdeiro de Rousseau e um charadista. Mas as charadas tinham desaparecido com os almanaques. Um pintor portanto original, criador, muito apreciado. «Tenha a floresta em casa» era o seu slogan publicitário. E as pessoas gostavam de ter em casa um pedaço dessa floresta, era refrescante. A maioria delas nunca tinha visto um leão nem um tigre a não ser nos livros de zoologia, porque os jardins onde havia animais eram poucos e os próprios animais tendiam a desaparecer, como se o mundo actual já não lhes pertencesse. As fêmeas procriavam com dificuldade, algumas espécies estavam praticamente extintas, outras tinham mesmo desaparecido por completo. Assim, já não havia elefantes, nem ursos nem leopardos.

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Comentário do conto A Floresta e sua Casa


O conto “A floresta em sua casa”, integra o livro “Os Idólatras”, de Maria Judite de Carvalho que reúne as narrativas da autora classificadas como pertencentes ao gênero Fantástico, conforme a teoria de Tzvetan Todorov (Introduction à la littérature fantastique, Paris: Seuil, 1973). Esse autor considera três condições necessárias para a definição do fantástico:
1) Que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas, e a hesitar entre uma explicação natural e outra sobrenatural dos acontecimentos evocados.
2) Que a hesitação possa ser compartilhada com uma personagem, ficando o papel daquele confiado a este e tornando-se a hesitação, uma vez representada, um dos temas da obra.
3) Que o leitor adote certa atitude em relação ao texto, recusando-lhe uma interpretação alegórica ou poética.
A narração heterodiegética (na terceira pessoa) torna mais difícil a manutenção do efeito fantástico, como será visto na análise do conto.
AS PERSONAGENS do conto são o Pintor e duas crianças, Giles e Alex. Giles, 5 anos, é considerado imaginativo pela família. Alex, 10 anos, é quem descobre os sucessivos desaparecimentos dos animais da tela. O Pintor é “um charadista”.
O TEMPO da ação é o Futuro, no qual Rousseau (1844-1910) é um velho artista do passado, no qual não há mais florestas, nem desertos, nem os animais que habitavam o mundo. Estes foram destruídos pela cultura há séculos.
O ESPAÇO caracteriza-se pela ambigüidade e pela duplicidade: o espaço da tela pintada e o espaço da casa onde a família habita.
O pintor inventa paisagens tropicais (como Dourmier Rousseau fazia), que nunca vira, e as vende para as pessoas que não conhecem a natureza real, destruída pela cultura.
O conto se desenvolve em duas partes:

1)Uma situação inicial que trata do pintor e suas pinturas, com minúcias descritivas e alusivas à destruição da natureza (§ 1 – 47).
2) A história propriamente dita (§ 48-128).

Na primeira parte, a personagem principal é o Pintor, interagindo com “as pessoas” e oferecendo-lhes seus quadros-charadas, que elas compram, mas não tentam decifrar. Na segunda parte, afasta-se o Pintor (o criador) e permanece a “criatura” (o quadro). As pessoas são limitadas a uma família: os pais (que compram o quadro, mas não se interessam por ele); os filhos (que querem decifrá-lo com muito interesse em fazê-lo).

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