7 de junho de 2014

Comentário do conto A Floresta e sua Casa


O conto “A floresta em sua casa”, integra o livro “Os Idólatras”, de Maria Judite de Carvalho que reúne as narrativas da autora classificadas como pertencentes ao gênero Fantástico, conforme a teoria de Tzvetan Todorov (Introduction à la littérature fantastique, Paris: Seuil, 1973). Esse autor considera três condições necessárias para a definição do fantástico:
1) Que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas, e a hesitar entre uma explicação natural e outra sobrenatural dos acontecimentos evocados.
2) Que a hesitação possa ser compartilhada com uma personagem, ficando o papel daquele confiado a este e tornando-se a hesitação, uma vez representada, um dos temas da obra.
3) Que o leitor adote certa atitude em relação ao texto, recusando-lhe uma interpretação alegórica ou poética.
A narração heterodiegética (na terceira pessoa) torna mais difícil a manutenção do efeito fantástico, como será visto na análise do conto.
AS PERSONAGENS do conto são o Pintor e duas crianças, Giles e Alex. Giles, 5 anos, é considerado imaginativo pela família. Alex, 10 anos, é quem descobre os sucessivos desaparecimentos dos animais da tela. O Pintor é “um charadista”.
O TEMPO da ação é o Futuro, no qual Rousseau (1844-1910) é um velho artista do passado, no qual não há mais florestas, nem desertos, nem os animais que habitavam o mundo. Estes foram destruídos pela cultura há séculos.
O ESPAÇO caracteriza-se pela ambigüidade e pela duplicidade: o espaço da tela pintada e o espaço da casa onde a família habita.
O pintor inventa paisagens tropicais (como Dourmier Rousseau fazia), que nunca vira, e as vende para as pessoas que não conhecem a natureza real, destruída pela cultura.
O conto se desenvolve em duas partes:

1)Uma situação inicial que trata do pintor e suas pinturas, com minúcias descritivas e alusivas à destruição da natureza (§ 1 – 47).
2) A história propriamente dita (§ 48-128).

Na primeira parte, a personagem principal é o Pintor, interagindo com “as pessoas” e oferecendo-lhes seus quadros-charadas, que elas compram, mas não tentam decifrar. Na segunda parte, afasta-se o Pintor (o criador) e permanece a “criatura” (o quadro). As pessoas são limitadas a uma família: os pais (que compram o quadro, mas não se interessam por ele); os filhos (que querem decifrá-lo com muito interesse em fazê-lo).

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O quadro, de início um elemento estático, passa a ser dinâmico. A dinamicidade é indicada por adjetivos aplicados ao leão (“Era um jovem leão ágil”, “corpo inquieto”) e é acentuada pela passagem de um tempo medido com exatidão crescente (“semanas”, “no dia seguinte”, “durante dois dias”, “depois”). Cada uma dessas notações temporais marca o desaparecimento de um ser: primeiro animais, depois gente. Somente após a compra do quadro tem início a história, que se desenvolve em cinco etapas:

1)A decifração do quadro (§48-70).
2)As descobertas de Alex e a promessa de segredo (§71-98).
3)A morte de Alex e a manutenção do segredo (§ 98-109).
4) A morte da mãe e a revelação do segredo (§ 110-118).
5)A solução do mistério (?) (§ 119-128).

Alex nota alterações no quadro e o desaparecimento de animais da tela. Revela suas descobertas ao irmão, exigindo que prometa guardar segredo. Na noite deste mesmo dia, ele foi assassinado e encontrado com as roupas dilaceradas e muito sangue no chão. A morte súbita e violenta da criança causa impacto que não se desfaz com a revelação pouco satisfatória dos criminosos: “confessaram o crime, ou melhor, não haviam reagido bem ao detector de mentiras”. O leitor, ainda desapontado com o andamento da história, é esclarecido de que o criminoso fora o pai, logo levado para o manicômio.
Giles guardou o segredo e a mãe foi morta. Depois desse fato, fica subentendido que o menino revelou o segredo, razão pela qual a família procura fazê-lo esquecer o passado. Da família restara Gilles. Os tios vieram buscá-lo, fechando a casa para sepultar o passado e com ele a ambigüidade mantenedora do mistério.

Ora bem, se aceitarmos que o pai é o criminoso, essa explicação natural tenderia a fazer o conto passar ao gênero “Estranho”. Todavia tal explicação seria satisfatória? Ela destrói a hesitação entre o natural e o sobrenatural? Se assim é, alguns questionamentos devem ser feitos para confirmação de uma eventual classificação do conto como “Estranho”, como sejam:
1-Como explicar o desaparecimento dos animais? Ficaria por conta da imaginação de Alex?
2-Giles é o que consideram o imaginativo pela família. Como explicar isto?
3-E a volta dos animais ao quadro no final do conto? Como explicar tal fenômeno pelas leis naturais? Impossível! A ambigüidade e o enigma permanecem. A aceitação do sobrenatural levaria o conto para o “Maravilhoso”? Mantê-lo-ia no Fantástico? O sobrenatural no conto é negativo: provoca a morte, a prisão e a perda. Logo, fica descartada a possibilidade de considerá-lo “Maravilhoso”.
Observar que a tensão Cultura versus Natureza ocorre em toda a primeira parte. Não seria a vingança da natureza contra a cultura que a destruiu, representada por aqueles que compraram o quadro?
Aparentando a sua autodestruição o Leão come animais na tela. Inicialmente, a natureza vinga-se, dissimuladamente, da cultura, destruindo os seus representantes (notar que é a partir da morte do último leão do mundo que o leão da tela começa a sua destruição).
Giles, o imaginativo, como era o pintor do quadro, foi o único que escapou da vingança. Mas nunca esqueceu os acontecimentos do passado, embora acabe por achar que tudo foi um sonho. Na idade adulta, ele retorna a casa onde tudo aconteceu. Todavia, para sua decepção e arrependimento, não consegue decifrar o enigma do quadro com os elementos que este fornece. E este enigma não é decifrado, porque não é decifrável. Se o fosse, o excelente conto de Maria Judite de Carvalho não seria um conto fantástico.

Fonte do comentário: Profa. Dra. Cleonice Berardinelli. In Colóquio Letras, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, nº 24, dezembro de 1975
Imagem: Aves. Arquivo Google.

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