30 de dezembro de 2014

Murilo Rubião: O Pirotécnico Zacarias.

"E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela-d'alva.”..(Jó, XI, 17)

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?...A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo - o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado. A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma palavra.
Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente. A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.
- Simplício Santana de Alvarenga!....
- Presente!....
Senti rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.
- "Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao tempo tirem os seus chapéus!”.
(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.)....
- Simplício Santana de Alvarenga!.
- Não está?.
- Tire a mão da boca, Zacarias!.
- Quantos são os continentes?
- E a Oceania?.
Dos mares da China não mais virão as quinquilharias.
A professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam D. Josefina a ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de barbante, quase encostada no teto.....
- Simplício Santana de Alvarenga!....
- Meninos, amai a verdade!....
A noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu. Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio. O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite que o branco desceria até a terra.
As moças que vinham no carro deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o melhor destino a ser dado ao cadáver.

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29 de dezembro de 2014

Comentário do conto O Pirotécnico Zacarias.

O Pirotécnico Zacarias é um dos melhores contos de Murilo Rubião. Nele, temos um narrador autodiegético (um narrador que protagoniza a história que narra) e que, considerando se trata de um “morto vivo”, instaura o efeito fantástico na narrativa, na medida em que, paradoxalmente, narra a própria morte, movimentando-se em um plano no qual estão eliminados os limites entre VIDA e MORTE. Tal condição abre espaço para Zacarias transitar livremente de um estado para outro, além de permitir que ele viva simultaneamente esses dois estados antagônicos e inconciliáveis.
Esta insólita situação rompe radicalmente com o princípios da lógica, resvalando para uma inconcebível contradição, na proporção em que contraria o princípio estabelecido segundo o qual duas proposições que mutuamente se contradizem não podem ser consideradas verdadeiras e, portanto, jamais será possível afirmar e negar concomitantemente a mesma coisa, sob pena de provocar uma negação do real. A transgressão de tal princípio significaria o advento de uma nova lógica que irromperia sob a égide do princípio da contradição, via absurdo.
Esta lógica contraditória e insólita é a que rege a instauração do fantástico muriliano neste conto, na qual qualquer tipo de diferença é banida, permitindo que estados tão diferenciados, antinômicos e inconciliáveis sejam nivelados, confundindo-se no indizível do fantástico.
No próprio conto são levantadas algumas respostas lógicas pelas personagens que tentam encontrar uma explicação para o inusitado fato que testemunham. Daí o surgimento de indagações: “Teria morrido o pirotécnico Zacarias?” As possíveis explicações lógicas e verossímeis são dadas na narrativa, à guisa de excluir ou dirimir o paradoxo instaurador do fantástico. Duas hipóteses de explicação, que reduziria o efeito fantástico a um mero fato natural, sem mistério, são discutidas:

1) O pirotécnico estaria vivo e o morto não passava de alguém parecido com ele.
2) O pirotécnico estaria morto e o vivo era alguém parecido com ele.

Ora bem, a escolha, pelo leitor, de qualquer uma das sugestões dissolveria o paradoxo e, consequentemente, excluiria o elemento fantástico. Todavia, se, por um lado, ambas as escolhas são lógicas e coerentes, ambas neutralizariam o efeito fantástico, por outro lado elas são igualmente possíveis. Sendo assim, a ambigüidade típica do fantástico permaneceria: O pirotécnico poderá estar vivo ou poderá estar morto.
O conto questiona a condição existencial do homem, a sua condição dramática, a sua tragédia individual: Zacarias só tem a sua existência reconhecida depois que morre. Quando era vivo, todos o ignoravam, nunca o perceberam como um ser humano. Ele passa a ter existência no âmbito do trágico.
O texto convida a uma reflexão sobre a realidade humana. Afinal, o que é o homem antes e depois de sua morte? Em qual das duas condições ele existe mais? Esta resposta cabe aos leitores responderem.
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Imagem na postagem: Foto de Murilo Rubião.



31 de julho de 2014

Um Esqueleto, de Machado de Assis


Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha de quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece que até se fizeram alguns trocadilhos.
O mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva.
É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de um artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo.
Aconteceu no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a aprendera com o Dr. Belém.
— Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.
— Não, responderam todos.
— Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu-do-chile de abas extremamente largas.
— Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
— Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um planeta...
— Mas esse homem?
— Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:
— Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida. Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse: 
— Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do esqueleto.
A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann. Alberto começou a narração. 
O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto. Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinqüenta. O estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.
— Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado.
— Vai casar?
— Vou.
— Com quem?
— Com a D. Marcelina.
D. Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não formosa, mas assaz simpática, possuía alguma cousa, mas não tanto como o doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos. Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal cousa.
— Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
— Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
— Não será uma formosura.
— Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
— Simpática, educada e viúva. Minha idéia é que todos os homens deviam casar com senhoras viúvas.
— Quem casaria então com as donzelas?
— Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas... O doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a falar da viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.
— Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa... Nunca a viu?
— Nunca.
— É impossível.
— É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.
— Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la.

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Comentário do conto "O Esqueleto".


O conto “Um esqueleto” tem seu tema baseado em um fato real macabro, e “...o tal esqueleto seria o de uma cantora lírica francesa, a bela Eugênia Mege, que ao chegar ao Brasil se apaixonara por um médico de grande clínica da antiga capital do Império, o Dr. Antônio José Peixoto. Assassinada pelo marido ciumento, seu corpo fora depois roubado da sepultura pelo amante, que lhe armara o esqueleto e o colocara, numa vitrina, em seu consultório, como um caçador ardente que colecionasse os seus troféus” .

O louco que protagoniza a narrativa é um insano. Assim, a trama desenrola-se entre peripécias medonhas que devem ter feito correr um calafrio pelas alvas e castas espinhas das leitoras oitocentistas do Jornal das Famílias. O epílogo é, entretanto, abrandado pelo mesmo artifício de outras narrativas: o nefasto personagem Dr. Belém, um doente mental, seria realmente um louco. Se tivesse existido... “Mas o Dr. Belém não existiu nunca - pondera Machado - eu quis apenas fazer apetite para o chá...”. E o autor reduz a narrativa, aterradora até então, aos “cestos de costuras”. 

“Um esqueleto” apresenta a realidade, prosaica, em contraponto ao fantasmagórico, arrepiante. Há nestas narrativas alguma influência dos autores fantásticos de seu tempo, como E. T. A. Hoffmann e Edgar Allan Poe, ainda que Machado desfaça os efeitos suscitados pelo insólito com uma brusca retomada da realidade, pondo fim ao efeito fantástico e, consequentemente, projetando a narrativa no âmbito do “estranho”.



Concluindo, nos contos fantásticos machadianos, não há a justificativa/explicação para os “fenômenos” narrados; elas são dissolvidas, quase sempre, pela simples dissolução do efeito fantástico “quase-macabro” ou seja, o horror diluído, desmanchado no final da narrativa, como pode ser visto em “O Esqueleto”.

7 de junho de 2014

A Floresta em sua casa, de Maria Judite de Carvalho


Pintava a lindas cores como um velho artista do passado, que se chamava Douanier Rousseau; simplesmente, os seus bichos não eram ingênuos nem agressivos, mas perigosos. Não terríveis, não assustadores: perigosos, embora um pouco engraçados também. Espreitavam ou estavam alerta ou resfolegavam ao de leve (era como se resfolegassem) ao preparar o salto. Havia sempre folhagem a dissimulá-los, a mantê-los numa quase ilegalidade graciosa, bonitas flores bojudas, de carne rosada, a tornar por assim dizer impossível, a ridicularizar, a sua ferocidade.
Não se via o tigre a atacar o búfalo, mordendo-o já, começando a dilacerá-lo. Não. O tigre, quando tigre havia, estava meio escondido por uma das tais flores, maior do que a sua cabeça. E sentia-se que ele já avistara a presa, que a espiava, que só estava à espera da altura mais conveniente, para agir. Era um jovem leão ágil, esse a que o pintor dava os últimos retoques. Um jovem leão já sabedor, a olhar bem de frente para quem o olhava. Tinha uma grande juba redonda e escura de que só se via metade, e um corpo amarelado que à primeira vista parecia exíguo. Exíguo porque atrás de si havia um tronco de árvore em cuja largura caberiam sete leões e que servia de pano de fundo a uma amálgama de lianas, de longas folhas gordas, carnosas, de arbustos que se erguiam do chão ou que tombavam de cima, em cascata. A juba estava semi-escondida por uma dessas folhas, grande e lobada, quase vermelha, quase animal.
«Era assim a floresta?» perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber? Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos. Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, o mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro pequenos jardins de aclimatação.
Aquelas estranhas florestas eram, no entanto, as que ele imaginava. Velhas, luxuriantes florestas de há séculos, com uma vida que vinha do princípio das coisas. Florestas com túrgidas flores que nasciam, cresciam e morriam em poucas horas, que, por assim dizer, renasciam e onde o perigo espreitava por detrás de cada folha.
Os seus quadros eram muito procurados porque eram decorativos, tinham belas cores e nunca acabavam de ser vistos. Ali, estava o leão, mas, olhando melhor, procurando, avistavam-se as três corças, todas encolhidas, como que receosas, a cobra a rastejar, e mais além, confundindo-se com as lianas, a aranha carangueja. Havia também ângulos dos quais se podiam ver animaizinhos escondidos, aqui e além. Um, dois, cinco, mais?
Era um herdeiro de Rousseau e um charadista. Mas as charadas tinham desaparecido com os almanaques. Um pintor portanto original, criador, muito apreciado. «Tenha a floresta em casa» era o seu slogan publicitário. E as pessoas gostavam de ter em casa um pedaço dessa floresta, era refrescante. A maioria delas nunca tinha visto um leão nem um tigre a não ser nos livros de zoologia, porque os jardins onde havia animais eram poucos e os próprios animais tendiam a desaparecer, como se o mundo actual já não lhes pertencesse. As fêmeas procriavam com dificuldade, algumas espécies estavam praticamente extintas, outras tinham mesmo desaparecido por completo. Assim, já não havia elefantes, nem ursos nem leopardos.

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Comentário do conto A Floresta e sua Casa


O conto “A floresta em sua casa”, integra o livro “Os Idólatras”, de Maria Judite de Carvalho que reúne as narrativas da autora classificadas como pertencentes ao gênero Fantástico, conforme a teoria de Tzvetan Todorov (Introduction à la littérature fantastique, Paris: Seuil, 1973). Esse autor considera três condições necessárias para a definição do fantástico:
1) Que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas, e a hesitar entre uma explicação natural e outra sobrenatural dos acontecimentos evocados.
2) Que a hesitação possa ser compartilhada com uma personagem, ficando o papel daquele confiado a este e tornando-se a hesitação, uma vez representada, um dos temas da obra.
3) Que o leitor adote certa atitude em relação ao texto, recusando-lhe uma interpretação alegórica ou poética.
A narração heterodiegética (na terceira pessoa) torna mais difícil a manutenção do efeito fantástico, como será visto na análise do conto.
AS PERSONAGENS do conto são o Pintor e duas crianças, Giles e Alex. Giles, 5 anos, é considerado imaginativo pela família. Alex, 10 anos, é quem descobre os sucessivos desaparecimentos dos animais da tela. O Pintor é “um charadista”.
O TEMPO da ação é o Futuro, no qual Rousseau (1844-1910) é um velho artista do passado, no qual não há mais florestas, nem desertos, nem os animais que habitavam o mundo. Estes foram destruídos pela cultura há séculos.
O ESPAÇO caracteriza-se pela ambigüidade e pela duplicidade: o espaço da tela pintada e o espaço da casa onde a família habita.
O pintor inventa paisagens tropicais (como Dourmier Rousseau fazia), que nunca vira, e as vende para as pessoas que não conhecem a natureza real, destruída pela cultura.
O conto se desenvolve em duas partes:

1)Uma situação inicial que trata do pintor e suas pinturas, com minúcias descritivas e alusivas à destruição da natureza (§ 1 – 47).
2) A história propriamente dita (§ 48-128).

Na primeira parte, a personagem principal é o Pintor, interagindo com “as pessoas” e oferecendo-lhes seus quadros-charadas, que elas compram, mas não tentam decifrar. Na segunda parte, afasta-se o Pintor (o criador) e permanece a “criatura” (o quadro). As pessoas são limitadas a uma família: os pais (que compram o quadro, mas não se interessam por ele); os filhos (que querem decifrá-lo com muito interesse em fazê-lo).

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