14 de outubro de 2011

A Construção do Fantástico na obra de Murilo Rubião


A estrutura da narrativa tradicional realista organiza-se segundo as categorias do senso comum e da realidade, apoiando-se numa espécie de pacto de objetividade, de veracidade, estabelecido entre o autor e o leitor. Por isso mesmo esse tipo de narrativa procura respeitar a ordem objetiva do tempo cronológico e dos planos espaciais, assim como as fronteiras entre o real e o imaginário, a vida e a morte, recorrendo sempre ao princípio da causalidade como procedimento mimético, com o que pretende assegurar a maior identidade possível entre a lógica do enredo e aquela do mundo real.
A narrativa fantástica coloca em xeque exatamente esse modo retórico de organização do relato, na medida em que instaura no próprio texto a desordem e a fratura. O novo discurso efetua uma desconstrução crítica da nossa representatividade empírica do real, fazendo com que o mundo cotidiano, aquele em que vivemos. Perca todo o contorno, torne-se o lugar do improvável, do fantástico. E numa atitude ainda mais radical, o texto decreta o questionamento dos postulados básicos da apreensão científica do mundo, os princípios da causalidade, da não-contradição, da identidade, denunciando a ilusão de um projeto que pretenda captar toda a complexidade do real apoiado apenas nos parâmetros objetivistas da ciência.
Para tornar efetivo o seu propósito de desconstruir criticamente a realidade, o escritor de narrativas fantásticas pode lançar mão de objetos insólitos, seres pitorescos e extravagantes, praticantes de ofícios estranhos ou anacrônicos, seres dotados de uma inconfundível vocação imaginária, cuja presença no texto é sintoma de uma propensão para o milagroso, o mágico, o fantástico e o mítico-lendário.
Outro caminho para a configuração do fantástico é a manipulação de elementos que compõem a ordem objetiva, elementos capazes de despertar a credulidade do leitor, mas que são alterados nas suas qualidades essenciais, convertendo-se em seres imaginários. Para conseguir criar uma atmosfera insólita, Murilo Rubião lança mão de recursos como:

1. O EXAGERO
2. A REITERAÇÃO
3. A OMISSÃO DE DADOS
4. O PARADOXO
5. A ATRIBUIÇÃO DE PROPRIEDADES INADEQUADAS A
- SERES OU OBJETOS;
            5.1 Efeitos sem caus
            5.2. Causas que não produzem efeitos
            5.3.. Incongruência entre causa e efeito
            5.4.Efeitos não proporcionais à causa
6. RUPTURA DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE
7. A DILUIÇÃO DAS CATEGORIAS ESPACIOTEMPORAIS;
8. A METAMORFOSE
9. A FIGURA DO DUPLO



1. O EXAGERO ou HIPÉRBOLE, ou seja, o aumento (ou diminuição) gradativo das propriedades de um elemento narrativo (situação, personagem, coisa). É o exemplo do conto Aglaia, no qual o casal após evitar contatos sexuais e se esterilizar, continua gerando filhos, que “nasciam com seis, três, dois meses e até vinte dias após a fecundação. Jamais vinham sozinhos, mas em ninhadas de quatro e cinco”. Uma coisa é considerada exagerada a partir do momento em que rompe os limites da realidade. A diminuição física, tendendo ao desaparecimento total, é tema central do conto O bloqueio, que narra a progressiva desmontagem de um prédio. O movimento redutivo é bidirecional: de cima para baixo e vice-versa. Ambos os casos definem-se como expressões hiperbólicas geradoras de uma temática fantástica. Os contos Bárbara e O edifício são também exemplos de uso do exagero na configuração do insólito.
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2. A REITERAÇÂO. Como a hipérbole, como figura de retórica privilegiada na poética muriliana, apóia-se na reiteração para sua formalização no discurso. Veja-se o conto Petúnia, no qual a repetição se define como um processo hiperbólico reiterativo, através do enterrar e desenterrar das Petúnias.

3. A OMISSÃO DE DADOS (elipse). Esse recurso consiste em omitir informações, em silenciar temporária ou definitivamente certos dados da história. Com isso, o narrador não apenas consegue dotar de maior relevo ou força narrativa esses elementos provisória ou totalmente suspensos, mas ainda contaminar todo o relato com certo enigma. Tal recurso provoca um a inquietação e uma confusão significativas, propiciando o estabelecimento de uma atmosfera de mistério, de fantasticidade: o ambiente torna-se denso, obscuro, uma forte tensão orienta as expectativas para um desfecho que permanece, contudo, incompleto. Tal atmosfera enigmática concentra a atenção e aviva a curiosidade do leitor, assim como o obriga a intervir na narração para preencher os vazios, acrescentando, adivinhando, em cumplicidade ativa com o narrador. Exemplifica bem o uso desse recurso o conto A Fila. Esse conto estrutura-se dentro das possibilidades expressivas da omissão de dados (elipse)

4. O PARADOXO. Com o recurso do paradoxo a narrativa oferece uma subversão total ou radical da lógica do bom senso: os elementos portadores da ambigüidade são associados pelo índice de igualdade, ou seja, dois ou vários sentidos opostos são combinados em um só sentido.

“O paradoxo, ao afirmar dois sentidos ou mais sentidos, contrários e exclusivos, ao mesmo tempo, rompe definitivamente com as características sistemáticas do bom senso. A potência do paradoxo consiste exatamente em mostrar que o sentido toma sempre dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo, de maneira que “o paradoxo como paixão descobre que não podemos separar duas direções, que não podemos instaurar um senso único”. Perplexo diante do paradoxo, o leitor nele assiste à diluição de todos os princípios ordenadores de sua apreensão lógica do mundo. Situado num espaço regido pelas leis da normalidade, o seu esforço em ordenar o caos que a narrativa lhe apresenta em desafio resulta numa tentativa sempre inútil de dali fazer sobressair uma direção particular e única.

Em Murilo Rubião, o conto O Pirotécnico Zacarias é o melhor exemplo da aplicação do paradoxo enquanto elemento desencadeador do absurdo-fantástico. Nessa narrativa, as possíveis soluções lógicas para a coexistência paradoxal da vida e da morte aparecem já no próprio texto: são as respostas dos circunstantes ao estranho fato de que é vítima a personagem principal.

5. A INADEQUAÇÃO DE PROPRIEDADES. Esse recurso, além de ser dos mais comuns, é também o que consegue configurar de forma mais imediata o efeito de insólito, de fantasticidade. A inadequação de propriedades consiste em atribuir a um objeto qualidades que não lhes são próprias, projetando-o assim na realidade fictícia completamente transformado em sua essência.

Na narrativa de Murilo Rubião é freqüente o uso desse recurso. Em algumas delas encontramos objetos e fatos dotados de propriedades que lhes são estranhas na vida real: mortos continuam vivos, animais que falam, máquinas que raciocinam, objetos que voam, flores que germinam em corpos humanos, sentimentos que se materializam. Em qualquer desses casos, nos defrontamos com objetos que compõem a nossa realidade cotidiana, situações rotineiras e fatos não excepcionais: o seu caráter fantástico decorre do toque que o autor lhes imprimiu, modificando-os qualitativamente, associando-os arbitrariamente, invertendo a ordem de suas relações.

Várias narrativas são movidas por esse recurso: O bloqueio (a máquina que destrói o edifício onde se refugiara Gérion, o protagonista do conto, é ambiguamente apresentada como se dispusesse de qualidades que lhe permitem comandar os próprios movimentos e, ainda mais, discernir os meios adequados para alcançar seus objetivos. É atribuída à maquina propriedades humanas); Teleco, o coelhinho e Os dragões, ( nesses contos, o autor atribui propriedades humanas a animais)

6.- RUPTURA DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE. A apreensão do real, seja a comum, seja a científica, fundamentam-se em um esquema de causas e efeitos com base no qual se pretende alcançar uma explicação lógica e racional para os fatos e acontecimentos. Esse esquema baseia-se na idéia de que existe uma ordem natural, uma espécie de harmonia pré-estabelecida que assegura coesão e unidade ao universo: a idéia de que toda a realidade que começa a existir é dependente de uma causa.

A narrativa realista é alicerçada nesses pressupostos, imitando a causalidade do mundo real, donde o seu caráter ordenado, simples, marcadamente linear. Neste discurso, a preocupação com a verificação e a verossimilhança, o empenho em reproduzir no universo da literatura a realidade empírica, faz com que esta seja tomada como um objeto de referência.

Orientando-se exatamente no sentido oposto, a literatura fantástica rompe com este nexo determinista de causalidade, submetendo-se a um esquema causal ditado pela descontinuidade entre causa e efeito, em qualquer das dimensões possíveis: que seja aquela de espaço, quer a de tempo, quer a de proporção.

Essa violação das leis da causalidade figura como um dos recursos mais recorrentes do fantástico muriliano e apresenta-se, em geral, sob as seguintes variantes:

6.1 efeitos sem causa,
6.2 causas que não produzem o efeito esperado,
6.3. incongruência entre causa e efeito,
6.4. efeito desproporcional à causa.

6.1. EFEITOS SEM CAUSA. Na narrativa Aglaia, a personagem principal (Aglaia) mesmo depois de eliminar todas a possibilidades de fecundação, ainda assim não consegue evitar ficar grávida sucessivamente e muito menos atinar com as suas causas. Por essa razão sofre, impotente e desesperada, a multiplicação dos seus monstruosos partos: Experimentava evitar os contatos sexuais.. Nem com essa decisão Aglaia deixou de engravidar. [...] Na desesperança, deixaram-se esterilizar e o resultado os decepcionou. Em prazo mais curto que o normal nasceram trigêmeos.
Se por si mesmo este fato já exclui a possibilidade de uma explicação natural, exigindo, para ser compreendido, um nível de raciocínio que ultrapasse a racionalidade objetiva, o próprio discurso narrativo encarrega-se de reiterar explicitamente a diferença insinuada, abrindo espaço para o testemunho da ciência que reconhece os próprios limites na explicação do inexplicável: Os amigos pediam-lhe calma, os médicos insistiam que todo um processo de fecundação fora violentamente alterado e a medicina não podia explicar o inexplicável.
O que surpreende, neste e noutros casos semelhantes, é a total impossibilidade de se identificar uma causa que justifique o efeito colhido pela narrativa: como explicar o desaparecimento dos mamilos de Galateu? Como entender, racionalmente que flores possam desabrochar das suas feridas? (O Lodo). E que dizer da germinação vertiginosa ocorrida no ventre de Cacilda (Petúnia), como aceitar que a lua possa surgir no ventre de Belinha? (A Lua). Não se trata apenas da omissão de um dado narrativo que o leitor possa suprir racionalmente, mas antes de uma apropriação do puro imaginário que escapa, por isso mesmo, a qualquer esquema lógico de explicação.

6.2.CAUSAS QUE NÃO PRODUZEM O EFEITO ESPERADO (IMPREVISIBILIDADE)

Em outros contos, surge uma variante da “ruptura do princípio de causalidade” que se configura da seguinte forma: apresenta-se uma causa suficiente para produzir determinado efeito. Este, contudo, não apenas é omitido do encadeamento narrativo como é ainda substituído por um outro que lhe é diametralmente oposto. Este é o caso de “Bárbara”, personagem do conto que tem o seu nome. O efeito normalmente esperado para a falta de alimentos é a redução de peso, o enfraquecimento do corpo. Se este resultado é alterado e a falta de alimentos passa a provocar aumento de peso, estamos sem dúvida alguma diante de um efeito fantástico: Trazia os olhos dirigidos para minha esposa, esperando que emagrecesse à falta de alimentação. Não emagreceu. Pelo contrário, adquiriu mais algumas dezenas de quilos.” Idêntica situação de imprevisibilidade observa-se em O edifício, onde o engenheiro-chefe tenta inutilmente convencer os operários da conveniência de paralisarem os trabalhos de construção. O seu discurso, que de início revela-se apenas ineficaz, termina por produzir um efeito exatamente contrário ao que ele pretendera.

6.3. INCONGRUÊNCIA ENTE CAUSA E EFEITO

Murilo Rubião faz da incongruência entre causa e efeito outra maneira de transgredir o princípio da causalidade, na medida em que, através desse recurso, promove a associação indevida de fatos que, se perfeitamente sólitos quando separados, passam a adquirir uma conotação insólita, fantástica, a partir do momento em que se estabelece entre eles uma relação de causa e efeito. Assim, é perfeitamente normal que alguém manifeste os seus desejos através de pedidos, como é igualmente normal que uma pessoa engorde. Não é normal, porém, que um fato desencadeie o outro. Entende-se que um viajante, recém-chegado a uma cidade, solicite de seus habitantes informações sobre o lugar; aceita-se também a detenção deste indivíduo desconhecido desde que haja um motivo legal que a justifique. O que não se pode aceitar é que a primeira atitude seja a causa determinante do ato seguinte, daí o fantástico. Os contos Bárbara e A armadilha exemplificam os dois casos:
(Bárbara) Pedia e engordava [...] preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição.
Que cidade é esta? – perguntou (Cariba), esforçando-se por dar às palavras o máximo de cordialidade.
Nem chegou a indagar pelas mulheres, conforme pretendia. Pegaram-no com violência pelos braços e o foram levando, aos trancos, para a delegacia da polícia.

6.4. EFEITOS NÃO PROPORCIONAIS À CAUSA

Outro recurso utilizado por Murilo Rubião é o da transgressão do princípio de causalidade sob a forma de uma avultada desproporção entre os efeitos e as causa que os teriam produzido. Exemplifica bem esse caso a narrativa O ex-mágico da taberna minhota. Nela, o encadeamento dos fatos obedece a uma causalidade mágica que, ao contrário da causalidade mimética, própria da narrativa realista, não imita a causalidade do mundo real nem assume o mundo da ciência como paradigma. Trata-se de uma narrativa que conserva toda sua irrealidade, suas leis arbitrárias (mágicas) apesar de ser exposta com detalhes da mais trivial materialidade.
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Autor: Audemro T. Goulart.
Imagem na postagem: Foto de Murilo Rubião. Fonte: Arquivo do Google.


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