3 de novembro de 2011

Comentário do conto As Formigas, de Lygia Fagundes Telles

Neste conto tem-se um narrador autodiegético, pois a própria narradora-protagonista é quem vivencia a história contada. Tem-se aqui perspectiva narrativa ou focalização da personagem principal, já que sua ótica direciona a ótica do leitor.
A primeira frase do conto avisa que "já era quase noite", indicando que a história se desenrola à noite ou ao menos em parte. A expressão "quase noite" aponta para o fato de que a luz do dia estava indo embora para ceder lugar ao mundo da escuridão. A ênfase no tempo da noite é dada ao longo de todo o texto. É durante a noite que os fatos ocorrem, como se as personagens não existissem durante o dia. As referências diurnas são rápidas.
Não há comentários sobre os acontecimentos do dia, como se as aulas não tivessem importância. A história transcorre ao longo de um período de três noites e dois dias: não há o fechamento de um ciclo, pois este é interrompido antes de se completarem quatro – representação da totalidade. As garotas descem do táxi em frente à pensão, um velho sobrado que parece esconder alguma verdade angustiante, dada sua aparência, tanto que paralisa por momentos as duas personagens: ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. A intuição inicial preludia algo inquietante: "sinistro", diz uma delas, ante o impacto. A narradora compara as janelas da fachada da casa a olhos, qualificando-os de tristes, estando uma delas com os vidros quebrados.

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Após subirem a escada velhíssima, cheirando a creolina, são recebidas pela velha dona da pensão, que também transmite uma imagem de decadência: o desbotado pijama, as unhas aduncas de esmalte vermelho-escuro descascado e de pontas encardidas, chinelos de salto, tosse encatarrada, peruca negra, balofa. Solta baforadas fortes de charutinho no rosto das meninas. Além de apresentar um aspecto feminino abandonado, sem nenhuma vaidade, tem atitudes que não demonstram tendência maternal positiva alguma com suas novas hóspedes, já que as examina com indiferença e descaso. Ela parece encarnar o protótipo da feminidade terrível, da mulher nefasta e não-acolhedora do regime diurno da imagem: soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara.
As primas entram na sala, primeiro aposento descrito pela narradora. Toda a descrição de seu interior faz crer num ambiente decadente e estranho: saleta escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilhos.
Não havia, entretanto, outra opção de escolha, pois nenhuma outra pensão oferecera condições e preço tão acessíveis às duas garotas. A velhota as convida para conhecer seu pequeno quarto localizado no sótão, ao qual se sobe através de uma escada de caracol muito estreita. O simbolismo da escada se liga à passagem de um nível a outro, estabelecendo relações de ascensão e valorização. É também a representação da graduação da passagem de níveis existenciais/psicológicos a outros. É necessário subir esta estreita escada em espiral para chegar ao minúsculo quarto, lugar onde acontecerá uma transformação de nível espiritual para material - uma inversão, portanto. A escada contribui para este clima estranho de uma montagem de um esqueleto que surgirá depois.
Conto fantástico que nos faz entrar no universo da autora e suas constantes viagens pelo universo feminino, talvez o mais sensível ou disponível para prestar atenção às questões da existência. Trata-se de duas primas universitárias, uma delas a narradora, que se vão instalar num quarto alugado numa casa tão decrépita quanto a sua dona, que, apesar da idade, usa uma destoante peruca preta (é interessante notar que a descrição que se faz da peruca (era mais negra que a asa da graúna) estabelece uma intertextualidade com Iracema, de José de Alencar. Esse recurso é muito comum na obra, havendo referências que vão de Olavo Bilac até à Divina Comédia).
Curioso é perceber que não há presença masculina alguma no texto, apenas a menção a um antigo inquilino do quarto em que as meninas estão se instalando e os ossos que ele havia deixado no cômodo. Uma das garotas, estudante de Medicina, interessa-se pelos restos, ainda mais quando descobre que são de um anão, o que os torna de extrema raridade. O mais incrível é que no meio da noite o quarto das moças é tomado por um cheiro ruim (bolor?) e por formigas que não se sabe de onde vêm, mas que se dirigem claramente para o recipiente em que estavam guardados os ossos, justamente embaixo da cama (esse lugar é riquíssimo de simbologia psicológica, estando ligado ao inconsciente e a pensamentos que são exilados, escondidos lá. Haveria aqui uma menção à sexualização, constantes nos sonhos da protagonista?) da estudante de Medicina.
E, para aumentar o tom macabro, a narradora havia sonhado com um anão (os ossos corporificados) de olhos azuis a olhar para ela. Eis uma presença masculina inquietante. Quando a prima da narradora vai verificar se não havia algum resíduo que na caixa que pudesse atrair as formigas, nota que os ossos tinham sua posição mexida, pois a cabeça, que estava no fundo, passara para a posição superior. Matam os insetos. No dia seguinte, não há resto algum deles, sendo que ninguém havia feito a limpeza do quarto. Na madrugada seguinte, quando a protagonista tem outro pesadelo, em que havia marcado encontro com dois namorados no mesmo local e hora, é acordada pela prima, que comunica o retorno das formigas.
E, completando o clima assustador, os ossos haviam mudado mais uma vez de posição, estando a cabeça entre os ombros e a coluna recompondo-se. Estaria então o anão se reconstituindo. Diante desse mistério, a futura doutora resolve passar a noite em claro e descobrir de onde vinham as formigas. Mas adormece, assim como a narradora. Esta última é acordada aos sustos pela parenta. As formigas haviam voltado e o esqueleto estava quase reconstituído, faltando apenas um osso da perna e outro do braço. Fogem desabaladamente da casa.
Neste conto se classifica uma situação de ironia na descrição da dona da pensão, em sua frustrada tentativa de aparentar uma juventude inexistente, resultando em uma quase caricata mulher.
Em todo o conto, o tema das oposições se faz presente, em uma tensão dualística que vai num crescendo, através das dialéticas luz/escuridão, ordem/caos, sono/vigília, realidade/sonho, vida/morte, humano/ inumano, curiosidade/temor, contedo/continente. Quando se fala da ambigüidade da narrativa fantástica, é que o protagonista-narrador é aquele que designa a duplicidade da narração fantástica e a contradição que ele imprime à obra.
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Aila Sampaio, autora do livro “Os fantásticos mistérios de Lígia”. Editora Expressão Gráfica, 2009




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