3 de novembro de 2011

Lygia Fagundes Telles: As Formigas.

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada
Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona avisara-nos por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. 
- É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção. - Estudo Direito. Medicina é ela.
A mulher examinou-nos com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina,tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos de entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
- Ele disse que era de adulto. De um anão.
-De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados...
Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!

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- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui do lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou coçando a cabeça. [...]
- De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louco de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! Mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas.
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está ai no chão do caixote, com um omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
_Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que ela levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
[...] às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão; desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. 
- E as formigas?
- Até agora nenhuma.
- Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
- Eu?! Quando acordei não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo… O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco do silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
- Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei para fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas traçando lá dentro, lógico, mas não foi isso que me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... estão se organizando.
- Como, organizando?
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e.... venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
 Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde da noite, um colega tinha casado e teve festa. [...]
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
- Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram – ela disse.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos de sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha; nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro quem vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
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Lygia Fagundes Telles.

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