22 de abril de 2012

Comentário do conto "Fronteira", de J. J. Veiga


No conto Fronteira de J.J. Veiga a personagem principal - o menino – é também o narrador que conduz a narrativa de acordo com a seu ponto de vista infantil. Assim, é estabelecida uma confrontação entre a idade adulta e a infantil, destacando-se a relação de conflito entre as perspectivas de ambos ao vislumbrarem o mundo, de modo que se a criança percebe as surpresas que o cotidiano proporciona, o adulto as generaliza e banaliza, para mantê-las dentro do habitual.
A partir daí, percebe-se no conto a tensão entre dois espaços desconhecidos entre si e reciprocamente ameaçadores: o real (espaço do mesmo, do que é conhecido), ocupado pelos adultos e o imaginário (espaço do outro, do desconhecido, do medo). Esses dois espaços são como prisões. Mediando os dois tem-se um espaço de trânsito, no qual, de algum modo, é possível escapar “à prisão” dos dois primeiros. Neste, só penetra o narrador-menino.
Além desses, há ainda o espaço do sonho. Os que habitam esse espaço podem ir para qualquer um dos quatro espaços já esboçados. Todavia, somente a criança adentra o espaço do SONHO, esse espaço mágico, que os adultos não conhecem ou que já esqueceram.
A criança transita livremente da fantasia para o real e vice-versa. As passagens de um ao outro lado são abertas. O adulto é preso ao real, não compreende o que está fora do saber real. Portanto não compreendem a criança, suas crenças e superstições infantis, suas visões particularizadas do mundo que a rodeia.
Na maioria dos casos, vê-se que, na perspectiva do narrador, a percepção adulta do mundo é até mesmo desvalorizada, como podemos notar por suas palavras: “Eu era ainda muito criança, mas sabia uma infinidade de coisas que os adultos ignoravam”.
Da mesma forma, o menino ignorava muitas das razões que regiam a vida dos adultos dentro da comunidade rural em que viviam, como a imperiosa e pesada responsabilidade que punham em seus ombros: “Minha mãe preparava a minha matula, dizia “coitado de meu filho, não tem descanso”, beijava-me na testa e lá ia eu a percorrer de novo a mesma estrada, como se eu fosse um burro cativo, levando às vezes gente que eu nem conhecia, e cujos negócios me eram remotos ou estranhos”.
O menino não pode escapar à penosa obrigação de ir-e-vir incessantemente, guiando adultos assustados e temerosos que “tinham medo do caminho”, medo de atravessar estradas desconhecidas: “A estrada é cheia de armadilhas, de alçapões, de mundéus perigosos, para não falar em desvios tentadores, mas eu podia percorrê-la na ida e na volta de olhos fechados sem cometer o mais leve deslize. Era por isso que eu não gostava de viajar acompanhado, a preocupação de salvar outros do desastre tirava-me o prazer da caminhada”.

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O menino tem um lugar marcado na comunidade, tem uma obrigação a cumprir, pesada, exaustiva, da qual não consegue se libertar. Ele vive num ir-e-vir contínuo, carregando pessoas. Tal tarefa o angustia, pois o prende a uma exigência da comunidade que sequer compreende e da qual não pode se libertar. Suas chances de libertação seriam atingir a idade adulta ou morrer, no primeiro caso equivaleria a “passar para o espaço do real, tornando-se adulto, mas perderia o trânsito para o espaço do sonho e suas maravilhas, pertencentes à criança. A segunda seria passar para o outro lado: a morte. “Minha única esperança de liberdade era crescer depressa para ser como os adultos, completamente incapazes de irem sozinhos daqui ali; mas quando eu baixava os olhos para olhar o meu corpo de menino, e via o quanto eu ainda estava perto do chão, vinha-me um desânimo, um desejo maligno de adoecer e morrer e deixar os adultos entregues ao seu destino”. Todavia, ainda restaria uma forma de libertação desconhecida pelo menino: ultrapassar a fronteira que separa o seu mundo do mundo dos adultos, rompendo com as normas da comunidade. É o que vai acontecer, quando o menino ao ser desafiado pelo pai
(representante da ordem) que rira dele e o chamara de fantasista, ao contar-lhe uma descoberta muito importante que fizera: “descobri que, quando se derruba uma moeda em água corrente, não se deve pensar em recuperá-la. Quem tentar fazê-lo poderá ficar o resto da vida à beira da água retirando moedas. É como se a pessoa “sangrasse” a areia do fundo da água e depois não conseguisse estancar o jorro de moedas”.
Desafiado a provar o que dissera, o menino leva o pai ao córrego e pede-lhe que atire uma moeda na água. O pai surtou diante do que viu ou pensou que viu, “e só à força conseguimos tirá-lo de lá dias depois; e para impedi-lo de voltar, tivemos de interná-lo”.
O menino rompeu com as normas da comunidade ao desafiar a cobiça do pai. Esta o culpa pelo surto do pai (levado ao delírio com a possibilidade de riqueza) e marginaliza-o. O desprezo da comunidade o libertou da penosa responsabilidade de tentar salvar pessoas de ameaças que ele próprio desconhecia.
Nesse cenário, em meio às regularidades do cotidiano, são inseridas ou descobertas situações que alteram a rotina, mas que não são vistas em sua absurdidade, pelo contrário, são aceitas com facilidade pelas personagens adultas, como resultado de uma acomodação e de uma alienação perante as circunstâncias e suas causas.

Autora: Zenóbia Collares Moreira
Imagem na postagem: O menino com malote. Tela de Cândido Portinari.


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