22 de abril de 2012

FRONTEIRA, de José J. Veiga



Eu era ainda muito criança, mas sabia uma infinidade de coisas que os adultos ignoravam. Sabia que não se deve responder aos cumprimentos dos glimerinos, aquela raça de anões que a gente encontra quando menos espera e que fazem tudo para nos distrair de nossa missão;
sabia que nos lugares onde a mãe-do-ouro aparece à flor da terra não se deve abaixar nem para apertar os cordões dos sapatos, Ca cobiça está em toda parte e morde manso; sabia que ao ouvir passos atrás ninguém deve parar ou correr, mas manter a marcha normal, quem mostrar sinais de medo está perdido na estrada.
A estrada é cheia de armadilhas, de alçapões, de mundéus perigosos, para não falar em desvios tentadores, mas eu podia percorrê-la na ida e na volta de olhos fechados sem cometer o mais leve deslize. Era por isso que eu não gostava de viajar acompanhado, a preocupação de salvar outros do desastre tirava-me o prazer da caminhada, mas desde criança eu era perseguido pela insistência, dos que precisavam viajar e tinham medo do caminho, parecia que ninguém sabia dar um passo sem ser orientado por mim, chegavam a fazer romaria lá em casa, aborreciam minha mãe com pedidos de interferência; e como eu não podia negar nada a minha mãe eu estava sempre na estrada acompanhando uns e outros. Mal chegava de uma viagem era informado de que fulano, ou sicrano, ou viúva de trás da igreja, ou o ancião que perdera a filha afogada estava a minha espera para nova caminhada. E sempre tinham urgência, negócios inadiáveis a tratar em outros lugares, se eu não lhes fizesse esse favor estariam perdidos, desgraçados, ou desmoralizados. Como poderia eu recuar e dar-lhes as costas, como se não tivesse nada a ver com os problemas deles? A responsabilidade seria muito grande para meus ombros infantis. Minha mãe preparava a minha matula, dizia “coitado de meu filho, não tem descanso”, beijava-me na testa e lá ia eu a percorrer de novo a mesma estrada, como se eu fosse um burro cativo, levando às vezes gente que eu nem conhecia, e cujos negócios me eram remotos ou estranhos.
Minha única esperança de liberdade era crescer depressa para ser como os adultos, completamente incapazes de irem sozinhos daqui ali; mas quando eu baixava os olhos para olhar o meu corpo de menino, e via o quanto eu ainda estava perto do chão, vinha-me um desânimo, um desejo maligno de adoecer e morrer e deixar os adultos entregues ao seu destino. Eu nunca soube há quanto tempo estava naquela vida, nem tinha lembrança de haver conhecido outra. Teria eu nascido com alpercatas nos pés e trouxinha às costas? Era difícil dizer que não, embora a hipótese parecesse inconcebível.
Se eu me queixava a outras pessoas, elas faziam um ar compungido, engrolavam qualquer coisa para dizer que cada um tem que aceitar o seu destino, e eu compreendia que eles também estavam me reservando para quando precisassem de mim; outros presenteavam-me com garruchinhas de espoleta, automoveizinhos de corda, quando não um par de botinas novas. Tudo o que eles queriam de mim era resignação e presteza. Naturalmente eu podia acabar com aquilo a qualquer hora, mas – e a responsabilidade?
Mas não se pense que as minhas caminhadas para lá e para cá fossem uma rotina desinteressante; nada disso. Raro era o dia em que eu não aprendia alguma coisa nova, e embora a descoberta só tivesse utilidade na estrada, eu a recolhia para utilização futura, ou para ampliação de meus conhecimentos.
Foi ao abaixar-me num córrego para beber água que fiz uma descoberta a meu ver muito importante: descobri que, quando se derruba uma moeda em água corrente, não se deve pensar em recuperá-la. Quem tentar fazê-lo poderá ficar o resto da vida à beira da água retirando moedas. É como se a pessoa “sangrasse” a areia do fundo da água e depois não conseguisse estancar o jorro de moedas.
Talvez eu não devesse ter contado isso a meu pai, pois não era difícil prever o que aconteceria. Ele riu em minha cara, e chamou-me fantasista. Como eu insistisse, ofendido, ele reptou-me a prová-lo. Ainda aí eu poderia ter desconversado, mas não: aceitei o desafio, como se tratasse de um ponto de honra. Levei-o à beira de um córrego, mandei-o soltar uma moeda na água – e só à força conseguimos tirá-lo de lá dias depois; e para impedi-lo de voltar, tivemos de interná-lo. Disseram que a culpa foi minha, mas não consigo sentir-me culpado.
Depois disso notei que as pessoas passaram a me evitar. A princípio pensei que estivessem sendo gentis, tivessem decidido dar-me afinal um descanso, depois de tantos anos de trabalho pesado; mas depois verifiquei que a situação era mais séria, nem na rua conversavam comigo, os poucos que eu conseguia deter estavam sempre apressados, davam uma desculpa e se afastavam sem nem olhar para trás.
De repente ocorreu-me um pensamento medonho: será que minha mãe também pensava e sentia como os outros? Nesse caso, que martírio não seria a sua vida, preocupada todo o tempo em esconder de mim os seus sentimentos! Alarmado com essa possibilidade, eu a observei durante dias, escutei-a no sono, tentando surpreender uma palavra, um gesto, qualquer coisa que me denunciasse o seu estado de espírito. Às vezes me parecia que o meu medo estava confirmado, mas no minuto seguinte eu estava novamente em dúvida. A única maneira de esclarecer tudo era naturalmente abrir-me com ela. Mas logo que comecei a expor-lhe o meu caso percebi o erro que havia cometido. Estava eu certo de querer a verdade, e não a compaixão de minha mãe? Qual seria nesse caso o papel de uma boa mãe – dar-me o que eu queria ou o que eu temia? Que direito tinha eu de forçá-la a uma decisão dessa ordem?
Quando acabei de falar ela abraçou-me chorando e só conseguia dizer: “Meu filho, meu filho tão infeliz!”
Qual seria o sentido dessa frase aparentemente tão clara? Seria pena pela minha sorte de guia forçado, pela minha capacidade de amedrontar os outros – ou estaria ela pensando na minha sina de amedrontador da própria mãe? Chorei também, mas depois percebi que eu não tinha motivo nenhum para chorar, eu estava chorando mais por formalidade, porque o que havia eu feito para estar naquela situação? Que culpa tinha eu da minha vida?
Enxuguei as lágrimas e senti-me como se tivesse acabado de subir ao alto de uma grande montanha, de onde eu podia ver embaixo o menino de calça curta que eu havia deixado de ser, emaranhado em seus ridículos problemas infantis, pelos quais eu não sentia mais o menor interesse. Voltei-lhe as costas sem nenhum pesar e desci pelo outro lado assoviando esfregando as mãos de contente.

(Conto inserido na coletânea Os Cavalinhos de Platiplanto, Ed. Bertrans-Brasil,1997.
Marcador:  Foto de J. J. Veiga.
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