[Valid Atom 1.0] O Fantástico Literário na Web: Petúnia, conto de Murilo Rubião

14 de dezembro de 2012

Petúnia, conto de Murilo Rubião


Nem sempre amou Petúnia. Mas não sabia de quem a tivesse amado tanto, enquanto Petúnia.
Eles gostavam dos jardins, dos pássaros, dos cavalos-marinhos, de suas filhas –Três louras Petúnias, enterradas na última primavera: Petúnia Maria, Petúnia Jandira, Petínia Angélica.
Quando dos pequeninos túmulos, colocados à margem da estrada, saíram os minúsculos titeus, nada mais pertencia a Éolo. Cacilda se assenhorara do seu talento, das suas recordações. Proibira-lhe visitar os jazigos das meninas, levar-lhe copos-de-leite, azaléias. Vedou-lhe o jardim, tomou-lhe o binóculo. É que apareceram os timóteos, umas flores alegres, eméritos dançarinos. Divertiam-se as miúdas Petúnias, brincando de roda, ensinando-lhes a dança, despindo-se das pétalas. A sua nudez aborrecia Cacilda. Sem protesto, Éolo aguardava as begônias, naquele ano ausentes.
Longa se tornou a espera e se punha triste por andar sozinho pelo quarto úmido. Impedido de franquear as janelas, que a esposa mandara trancar com pregos, ele imaginava com amargura os lindos bailados dos timóteos, a alegria das louras Petúnias. Por que Petúnia-mãe as julgava mortas, se nada apodrecera?
A primeira Petúnia, Petúnia Maria, filha de Petúnia Joana, levou-o a acreditar que os dias seriam felizes.
-chamo-me Cacilda. Nenhuma delas se chama Petúnia – gritava a mulher. (Cacos de vidro, perdeu-se o amor de encontro à vidraça.)
Por que begônias? Felônia, felonia. Fenelão comeu a pedra – Petúnia Jandira gostava de histórias:
-Papai, quando virão os proteus?
-Não comem gente, são dançarinos, filhinha.
-E os homens?
-Fenelão comeu a pedra. Era lírico o Fenelão.
Éolo não tinha planos de casamento, porém sua mãe pensava de outro modo:
-Sou rica e só tenho você. Não admito que minha fortuna vá para as mãos do Estado. – E, irritada diante dessa possibilidade, alteava a voz:
-Quero que ela fique com os meus netos!
Vendo que não conseguia mudar as convicções do filho, nem seduzido com a visão antecipada de possíveis descendentes, descaía para a pieguice.
-Além do mais, amor, quem cuidará do meu Éolinho?
O diminutivo era o bastante para enfurecê-lo. Saía batendo as portas até seu quarto.
Periodicamente dona Mineides promovia festinhas, enchendo a casa de moças, esperançosa de que o rapaz casasse com uma delas. Às que reuniam, na sua opinião, melhores qualidades para o matrimônio, insinuava, aparentando uma felicidade um tanto fingida: “Alguém terá que substituir-me e cuidar dele com o mesmo carinho”.
As jovens concordaram, felizes por se tornarem cúmplices da velha.
O filho bocejava. Ou se irritava ouvindo os gritinhos histéricos, as perguntas idiotas, a admiração das mocinhas pelo casarão, onde o mau gosto predominava.
Enfastiado, esperava esvaziar-se o recinto, cessasse o alvoroço das inquietas raparigas. Terminada a festa, dona Mineides e os criados já recolhidos aos aposentos, os pássaros invadiam as salas, voavam em torno dos lustres, pousavam nos braços das cadeiras. Não cantavam. Ruflavam de leve as asas, para não despertar os que dormiam, pois jamais permitiam que outras pessoas, além dele, os vissem em seus vôos noturnos.
Estava Éolo, numa tarde, a soltar bolhas de sabão, quando ouviu de longe a mãe berrar:
-Éolo, seu surdo, venha cá!
Relutou em atender ao chamado, tal o seu desagrado pelo tom brusco com que solicitavam a sua presença na sala.
A velha aguardava-o impaciente. Logo que pressentiu seus passos no corredor, avançou em direção do filho, arrastando pelas mãos uma moça que pouco à vontade a acompanhava:
-É ela.
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Não se lembraria em seguida de ter ouvido o nome de Cacilda, talvez pela surpresa do encontro. O rubor subiu-lhe a face, ele que de ordinário mostrava-se seguro de si ou indiferente no trato com as mulheres. Ficou a contemplar em silêncio os olhos castanhos e grandes, os lábios carnudos, os cabelos longos da desconhecida. Vagaroso aproximou-se dela e tomou-a nos braços. Apertou-a , a princípio com suavidade, para depois estreitá-la fortemente. Dominado pela sensualidade que aquele corpo lhe provocava, esqueceu-se da mãe. A jovem mulher não se perturbou. Desprendeu-se dele e disse com naturalidade:
-Lindos pássaros.
Dona Mineides olhou para os lados e nada vendo perguntou:
-Que pássaros?
Éolo ignorou a pergunta, já convencido de que sempre amara Petúnia, porque na sua frente estava Petúnia.
A mãe não presenciou o casamento. Antes de morrer, manifestou o desejo de ver seu retrato transferido da sala de jantar para os aposentos que iriam abrigar o casal. Petúnia apressou-se em concordar, enquanto Éolo, consciente dos motivos que levavam a moribunda a expressar o estranho pedido, hesitava em dar sua aquiescência.
Casados, os dias corriam tranquilos para os dois. A casa vivia povoada de pássaros e cavalos-marinhos, estes trazidos pela noiva. Até o nascimento da terceira filha nenhum atrito criava desarmonia entre eles.
Alguns dias após o último parto, aterrorizada, Petúnia acodou o marido:
-Olha, olha o retrato!
Éolo demorou a entender por que fora despertado de maneira tão repentina. Finalmente compreendeu a razão: a maquilagem da mãe se desfazia no quadro, escorrendo tela abaixo. Levantou-se resmungando. Com a ajuda de batom e cosméticos retocou o rosto de dona Mireides.
-Pronto – disse. O sorriso demonstrava sua satisfação pelo trabalho realizado.
Petúnia fez uma cara de nojo e virou-se para o canto. Custou a reencetar o sono interrompido. Por mais que tentasse esquecer a cena, tinha o pensamento voltado para o retrato da sograa derreter-se, sujando a moldura e o assoalho.
A repetição do fato nas noites subsequentes aumentou o desespero dela.. Suplicava ao esposo que retirasse o quadro da parede. Éolo fingia-se desentendido. Pacientemente recompunha sempre a pintura velha.
Houve um momento em que Petúnia descontrolou-se:
-Como é possível amar, com essa bruxa no quarto?
As relações entre os dois, aos poucos, tornavam-se frias, sem que deixassem de compartilhar a mesma cama. Quase não se falavam, os corpos distantes, nunca se tocando. Cacilda lhe dava as costas e entediada lia um livro qualquer. Também descuidava das filhas e muitas vezes as evitava.
Éolo acabava de entrar em casa, vindo da cidade, quando sentiu o corpo tremer, afrouxaram-lhe as pernas, a náusea chegando à boca: jogadas no sofá, as três Petúnias jaziam inertes, estranguladas. Cambaleante, deu alguns passos. Depois retro0cedeu apoiando-se de encontro à parede. Transcorridos alguns minutos, superou a imensa fadiga que se entranhara nele e pôde observar melhor as filhas. Quis reanima-las, endireitar-lhes os pescocinhos, firmar as cabecinhas pendidas para o lado.
Percebeu a inutilidade dos seus esforços e rompeu-se num pranto convulsivo. Não entendia por que alguém poderia ter feito aquilo. De repente tudo se aclarou e saiu à procura de Cacilda. Encontrou-a sentada na cama, segurando a cabeça nas mãos.
Inquirida sobre o que acontecera, levantou os olhos secos na direção do marido:
-Foi ela, a megera, - A voz era inexpressiva, sumida. O dedo apontava o retrato da velha a se desmanchar na tela.
Perdera a noção de quantas horas havia dormido. O primeiro pensamento, ao acordar, foi para as Petúnias. Seguiu até a sala e surpreendeu-se por não vê-las no mesmo lugar. Vasculhou os aposentos. Nenhum sinal das filhas ou da mulher. Teve o pressentimento de que tinham sido levadas para o jardim e desceu rápido as escadas. Não transpôs a porta. Os cavalos-marinhos obstruíam a passagem. Avançaram sobre ele, subindo pelas suas roupas, cobrindo-lhe o rosto, os cabelos. Recuou apavoerado, a sacudir para longe os agressores.
Cacilda retornou tarde. Não deu explicações do que se passara, nem justificou sua ausência. Daí por diante, Éolo habituou-se às constantes fugas da esposa, que saía de manhã e só regressava com o sol posto. Não dirigia uma palavra sequer ao marido, mas aparentava tranquilidade e espelhava, às vezes, certa euforia. Também costumava assobiar.
Por muirtom tempo Éolo se absteve de sair de casa, temeroso da fúria dos cavalos-marinhos. Impossibilitado de saber o que se passava lá fora, através das janelas hermeticamente trancadas, vagava pelos quartos, afogava-se na tristeza.
Quando, por acaso, descobriu que os pequenos animais tinham o sono tão profundo quanto o de Cacilda, a alegria lhe retornou. Bem sucedido na primeira tentativa de chegar ao pátio sem ser molestado, adquiriu a confiança de que jamais seria pressentido em seus passeios noturnos. Tão logo a esposa adormecia, escapava sorrateiro da cama, escorregabdo por debaixo das cobertas. Fazia o menor ruído possível e ao alcançar o jardim desenterrava as filhas, transferidas de seus túmulos para um canteiro de açucenas. Elas se desvencilhavam rápidas de suas mãos e ensaiavam imediatamente os primeiros passos de uma dança que se prolongaria pela madrugada afora. Ao lado, bailavam risonhos os titeus e proteus.
Em uma das ocasiões em que se preparava para levantar-se, descuidou-se um pouco, suspendendo demasiadamente o lençol que cobria a companheira: no ventre dela nascera uma flor negra e viscosa. Recém-desabrochada. Cortou-a pela haste, utilizando uma faca que buscara na cozinha, e levou-a consigo. Caminhava sem precaução, a esbarrar nas portas, tropeçando nos degraus. Contudo manteve os seus hábitos. Apenas não prestou grande atenção aos bailados nem limpou cuidadosamente as Petúnias.
Nas noites seguintes sempre encontrava a rosa escura presa à pele de sua mulher. Não mais a cirtava. Arrancava-a com violência e a desfazia entre os dedos. Nervoso, descia ao jardim, para cumprir o ritual a que se acostumara.
Mesmo contra a sua vontade, não conseguia abandonar o leito sem descobri o corpo da esposa, muito menos desviar os olhos da flor. Na impossibilidade de livrar-se daquela presença obcecante, procurou a faca com que decepara a flor negra da primeira vez e enterrou-a em Cacilda.
Éolo, o olhar fixo no busto da morta, contemplava-o sem a avidez de anos atrás. Voltou-e, por instantes, para os lábios carnudos, dos quais desaparecera a antiga sensualidade. Ao levantar a cabeça, notou que a maquilagem da mãe se desfizera. Recompôs a pintura e sentou novamente na cama. O sangue ainda escorria da ferida, quando multiplicaram as flores no ventre de Cacilda.
Carregou-a nos braços até o quintal. Depois de alguma hesitação quanto à escolha do local onde abriria a cova, optou por um canteiro de couves. Cavou um buraco fundo, jogando nele o corpo. Mal o cobrira com terra, da improvisada sepultura emergiam pétalas viscosas e pretas. Maquinalmente foi arrancando uma a uma. Em meio à tarefa, lembrou-se das filhas. Largou o que estava fazendo e correu para desenterra-las. Sentia-se extenuado, porém aguardou que elas terminassem a dança, antes que subisse ao quarto. Jogou-se na cama sem despir-se e adormeceu imediatamente. Não dormiu muito. Os estalidos, que vinham do assoalho, acordaram-no. Sobressaltado, viu o aposento atapetado de rosas negras. Urgia destruí-las, senão passariam a outras a outras dependências, chegariam às casas mais próximas, levando consigo a prova do crime. E os vizinhos não deixariam de denunciá-lo à polícia. Alarmou-se com a possibilidade de ser encarcerado: quem cuidaria do retrato da mãe, que retiraria da terra as Petúnias?
Não dorme. Sabe que os seus dias serão consumidos em desenterrar as filhas, retocar o quadro, arrancar as flores. Traz o rosto constantemente alagado pelo suor, o corpo dolorido, os olhos vermelhos, queimando. O sono é quase impossível , mas prossegue.

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