25 de abril de 2013

Comentário do conto "Os do outro lado".

O conto “Os do outro lado” é relatado a partir do ponto de vista de um narrador-protagonista, uma criança, que narra os acontecimentos insólitos vivenciados por ele e os transtornos pelos quais passam os habitantes de uma cidadezinha interiorana, submetidos a uma lei superior que não ousam transgredir. Inexistem questionamentos sobre esta lei e quase todos passam a conviver com ela naturalmente. Ou seja: aceitam-na sem indagarem acerca da pertinência da mesma.
A narrativa é iniciada com o narrador apresentando um curioso e inusitado fato: a descoberta de uma enorme casa vermelha até então absolutamente estranha para ele, não obstante estar situada em um lugar por onde transitava diariamente, como relata o trecho a seguir:
“A CASA era grande e alta, de tijolos vermelhos, talvez a mais alta do lugar. Ficava atrás de uma cerca de taquara coberta de melões-de-são-caetano. Mas sendo tão grande, tão alta e de cor tão viva, e a cerca não tendo mais que a altura de um homem médio, nunca pude compreender por que não era vista da rua. Desde que me entendo, eu passava por lá todos os dias, para cima e para baixo, lembro-me bem da cerca inclinada aqui e ali ao peso da folhagem [...]. Lembro-me de tudo isso mas não me lembro da casa vermelha anteriormente aos acontecimentos que vou relatar”.
A seguir, o narrador relembra fatos que aconteceram antes da descoberta da casa de tijolos vermelhos, reforçando mais ainda o mistério que envolve a mesma. Mistério que ele não tem pressa em elucidar, só retomando a intrigante questão da casa, muito depois de ter esgotado o repertório dos acontecimentos passados.

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Neste ponto da narrativa, o componente insólito ainda não é delimitado, definido, porque está confundido com outros componentes verossímeis pertencentes ao real. Com isso, o sobrenatural afirma-se aos poucos em um ambiente magicamente construído, sem que isso elimine as caracterizações verossímeis que remetem ao mundo aparente. Em conseqüência, o leitor pode estranhar que o fato incomum de uma casa vermelha e enorme permanecer invisível a um menino, abrindo um campo de incerteza e de ambiguidade típicas do fantástico que suscita a oscilação entre uma explicação sobrenatural ou uma explicação real que indiciaria um equívoco quanto ao tamanho da casa, considerando algumas peculiaridades da ótica infantil. De certo modo, essa ambiguidade inicial confirma a instauração da hesitação apontada por Todorov como um dos elementos essenciais à instauração do fantástico. Ela irrompe no conto através da caracterização de espaços ambíguos.
A ambigüidade fantástica é engendrada nessa narrativa notadamente através da habilidade do autor em mesclar realidades excludentes. Os acontecimentos incomuns transcorrem em um lugar típico de uma cidade interiorana. Vejamos como ocorre a caracterização da cidadezinha cujo suporte está firmado no “mundo aparente”:
“Desde que eu me entendo, eu passava por lá todos os dias, para cima e para baixo, lembro-me bem da cerca inclinada aqui e ali ao peso da folhagem, a rua de largura exagerada, o capim crescendo nas fendas da calçada, e no meio da rua os riscos paralelos das rodas dos carros, cortados fundo na terra vermelha. Lembro-me barranco alto que havia do outro lado, as casinhas equilibradas lá em cima entre mangueiras e abacateiros, as frutas que caíam na rua e que ninguém apanhava, até olhava com certo receio; a roupa estendida na cerca de arame”.
Sutilmente são introduzidos os fatos insólitos num ambiente familiar do ponto de vista do narrador infantil que, assim como os moradores do lugar, não questionam a imposição absurda de não atravessarem a cidade. Parece-nos que, neste momento, o emprego de um recurso narrativo, como a focalização, anula o estranhamento, aventado inicialmente, do incomum (casario ignorado, interditos) e do sobrenatural (borboleta com mensagem, pessoas flutuando em bolhas).
O insólito, em ótica racional, deixa de ser o “outro lado”, o desconhecido, para incorporar-se ao real.
Neste conto de Veiga, a ausência de estranhamento, que visa atingir o leitor, é trabalhada a partir do ponto de vista adotado, assim como do comportamento conferido ao protagonista e às personagens. Ainda, a caracterização espacial do “outro lado” revela que este outro ambiente, sutilmente sugerido como depois da cerca, encontra-se na mesma cidade e é descrito como os demais lugares. A introdução sutil de outros elementos insólitos segue sem inquirições, como no momento em que o menino vislumbra uma borboleta com mensagem grafada nas asas, quando conduzia o cavalo ao rio.
O ápice da caracterização insólita, empreendida neste conto, ocorre no espaço desta casa vermelha, mais precisamente no quintal, onde o protagonista e uma outra personagem – a irmã do amigo Benigno – compartilham da imagem sobrenatural de pessoas voarem dentro de esferas transparentes.
Quando ela acabou de dizer isso um clarão muito forte, branco como a luz de magnésio, iluminou todo o céu atravessando as paredes e o telhado da casa. “Corremos para fora e vimos uma quantidade de objetos como enormes bolhas de sabão cruzando lentamente o céu no rumo do barranco do outro lado”.
Percebe-se que a interpenetração entre o real e o irreal está completa, pois o fato do garoto rever pessoas conhecidas é verossímil, mas elas estarem dentro de bolhas flutuantes, foge à explicação racional. Essa coexistência de realidades – uma no limite do possível, do lógico e outra no âmbito do sobrenatural, do ilógico – mantém a ambigüidade do fantástico, fazendo o leitor hesitar entre apreender a narrativa pela vertente do empírico ou do imaginário.
O relato dos fatos, anteriores ao da casa, é efetuado com muita precisão o que, de certo modo, aproxima o leitor dos acontecimentos, à medida que acompanha de perto os detalhes da difícil trajetória do menino, repleta de obstáculos: “Vejo-me transportando o prato com muito cuidado porque estava cheio de derramar, a caminhada era difícil por causa das falhas do calçamento, das ladeiras a subir e descer e eu não podia deixar cair uma jabuticaba que fosse.” Carregando um prato de jabuticabas, com uma acirrada responsabilidade de não derrubar nenhuma, o garoto sofre em seu caminho.
Na casa do amigo, ele passa pelo constrangimento e desconforto de não ter onde colocar o prato que ninguém quer segurar. Ao menino só resta uma opção, a saber, depositá-lo em um dos quatro cantos da cozinha ocupados, respectivamente, por um jabuti, um formigueiro, uma arara e um forno. Depois de refletir por um tempo, o garoto escolhe deixar o prato de jabuticabas no forno de tijolos.
Outra experiência pela qual o menino passa, merece destaque a visão da borboleta com mensagem nas asas, considerando que ela muda o rumo dos fatos, pois é no afã de capturar o inseto e decifrar-lhe a mensagem, que ele transpõe a cerca que separava o lugar proibido, atingindo “o outro lado” inicialmente, caracterizado como um lugar comum.
É no momento final, quando o garoto amplia o ângulo de sua observação, abarcando toda a casa, que o fato mais extraordinário acontece, quando ele e sua amiga observam a imagem sobrenatural de pessoas voando em bolhas e, nesse momento, constatam que as pessoas que passaram para o “outro lado” estão felizes:
“Deu-me pena vê-los prisioneiros daquelas bolhas, sendo levados para um lugar onde ninguém queria ir. Mas por que não iam tristes? Por que não reclamavam? Por que esfregavam as mãos, como se tivessem pressa de chegar? Até Benigninho, que na escola reclamava de tudo, ia risonho e contente. Quando o viu, a irmã deu um grito e apertou-me o braço com tanta força que eu tive de empurrá-la. Pode ser impressão, mas acho que Benigno percebeu o susto da irmã, pois olhou-nos, com um sorriso tão convincente que ela mudou logo a fisionomia.”
O protagonista vivencia essa experiência, inusitada e decisiva para sua vida, no espaço da casa. Esse componente espacial assume no texto uma dimensão cósmica, representando a vivência do adolescente e seu esforço cognitivo de desvelar a realidades que o cercam. Seja no âmbito social, no existencial, no mítico, o garoto está sempre “visualizando” universos que, embora imbricados ao seu mundo cotidiano, apresentam-se-lhe como diferentes e insólitos. Acreditamos que o significado global da obra reporta à atividade inerente ao ser humano de perscrutar realidades subjacentes à aparente e, assim, chegar a descobertas relevantes a seu processo inquiridor.
O sentido maior subjacente ao conto, indicia-se no próprio título, “Os do outro lado”, conduzindo o leitor a exercitar-se nessa percepção mais ampla do mundo, pois, só deste modo, será capaz de apreender verdades significativas, muitas vezes insólitas. Poderá, assim, à semelhança do protagonista, visualizar essa “outra dimensão” e descobrir verdades tão importantes quanto a que nos sugere o texto, que passar para o “outro lado”, seja ele qual for, “Não dói! [...] ___ Quanto medo sem motivo! ___Quanto medo sem motivo!”

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