25 de abril de 2013

J. J .Veiga. Os do outro lado.


A casa era grande e alta, de tijolos vermelhos, talvez a mais alta do lugar. Estava atrás de uma cerca de taquara coberta de melões de são caetano. Mas sendo tão grande, tão alta e de cor tão viva, e a cerca não tendo mais que a altura de um homem médio, nunca pude compreender porque não era vista da rua. Desde que me entendo, eu passava por lá todos os dias, para cima e para baixo, lembro-me bem da cerca inclinada aqui e ali ao peso da folhagem, a rua de largura exagerada, o capim crescendo nas fendas da calçada, e no meio da rua os riscos paralelos das rodas dos carros cortados fundo na areia vermelha.
Lembro-me do barranco alto que havia do outro lado, as casinhas equilibradas lá em cima entre mangueiras e abacateiros, as frutas que caíam na rua e que ninguém apanhava, até olhava com certo receio; a roupa estendida na cerca de arame, as pancadas permanentes que vinham de lá, como se a única ocupação daquela gente fosse remendar panelas e tachos, num serviço que nunca acabava. De vez em quando um cachorro latia sem muito entusiasmo e logo se calava, como se estivesse apenas cumprindo uma obrigação, ou avisando que não o esquecessem que ele também queria entrar na paisagem. Lembro-me de tudo isso mas não me lembro da casa vermelha anteriormente aos acontecimentos que vou relatar.
Também não me lembro de ter andado do outro lado, não sei quem morava lá, aquela parte não estava no meu caminho nem na minha curiosidade; só me recordo, como coisa normal e aceita, que os entes que moravam lá não eram para ser vistos, muito menos frequentados ou recebidos. Se acontecia-nos encontrar um deles, virávamos o rosto para o outro lado, ou corríamos caso ele viesse nos falar.
Por causa deles fiquei preso várias horas em casa de uns amigos, onde tinha ido levar um prato de jabuticabas. Vejo-me transportando o prato com muito cuidado porque estava cheio de derramar, a caminhada era difícil por causa das falhas do calçamento, das ladeiras a subir e descer e eu não podia deixar cair uma jabuticaba que fosse. Não que alguém as fosse contar uma a uma e responsabilizar-me pelas que faltassem; eu até comi boa quantidade delas pelo caminho, apanhando-as com a boca por ter as mãos ocupadas com o prato. Mas eu sabia que se deixasse uma só cair no chão uma coisa irreparável aconteceria. A minha responsabilidade era imensa, era como se eu estivesse aguentando nas mãos a mola que impede o mundo de desmanchar-se.
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Quem me advertira? Quem me ameaçara? Não me lembro de advertência nem de ameaça, eu tinha uma ciência conformada, eu o sabia desde sempre, talvez mesmo antes de ter nascido. Era qualquer coisa a que o pessoal do outro lado não estava alheio.
Cheguei suado e cansado, com os braços doloridos de cãimbra, ansioso por passar o prato a outras mãos – mas encontrei a casa fechada. Gritei até mais não poder, dei pontapés na porta, com muito cuidado para não balançar o prato. Tudo inútil, ninguém veio atender. Olhei em volta e notei que todas as casas da rua estavam sendo fechadas apressadamente, janelas e portas se batiam, ferrolhos rangiam, crianças eram arrastadas para dentro aos solavancos, iam chorando, de mãozinhas estendidas para os brinquedos que deixavam para atrás. Não compreendi a razão de tanto nervosismo, a rua estava aparentemente calma.
Resignei-me a enfrentar as mesmas dificuldades na volta, cheguei a andar alguns passos, quando vi alguém olhando de meia-cara por uma das janelas laterais. Gritei de novo, pedi que abrissem, e fizeram-me sinal para que desse a volta e entrasse pelos fundos.
Para dar a volta era preciso passar uma cerca de arame farpado entre o quintal e a rua. Passei rasgando a roupa e as pernas, mas não havia outro jeito porque as mãos estavam ainda ocupadas. Na cozinha cheia de gente ninguém quis tomar-me o prato. Não houve recusa direta, foram até muito gentis, apenas quando eu me dirigia a um, esperando que me socorresse, ele disfarçava, fingia uma ocupação ou iniciava uma conversa animada com outro. Procurei um canto protegido, onde pudesse deixar o prato sem perigo de que o pisassem, mas não tive melhor sorte; num canto havia um jabuti encolhido em sua casca, em outro um formigueiro em atividade, em outro uma arara roía um gomo de cana em cima de um tamborete, e o último canto era ocupado por um enorme forno de tijolos. Afastei com o prato a tábua que tampava o forno, enxotei uma galinha que fizera ninho lá dentro e escondi lá o prato de jabuticabas.
Nessa altura eu me sentia tão cansado que a minha única preocupação era sentar-me em algum lugar. Sentei-me no chão mesmo, sem que ninguém notasse a esquisitice do meu ato, fiquei ali emburrado, frustrado, desejando que alguém acendesse o forno sem ver as jabuticabas, seria uma boa lição.
Quando a minha zanga esfriou fui prestando atenção a conversa e fiquei sabendo que era o dia da saída do pessoal do outro lado. Eles saíam uma vez por mês, ou por ano, e era preciso evita-los a todo custo. Não passava pela cabeça de ninguém e ideia de desafiar a proibição, de acabar com o inconveniente de se esconder. Era assim e tinha de ser assim, ninguém perguntava por quê.
Também ninguém perguntava por que a casa vermelha, sendo diferente das outras, não sobressaía, não atraía gente para admirá-la, nem mesmo era vista por quem passasse na rua. Quanto a mim, eu a vi opor acaso.
Todas as tardes, na hora do sol mais quente, eu levava o nosso cavalo a beber água no rio. Muitas vezes, enquanto ele fincava o focinho na água e engrossava o pescoço para facilitar a passagem dos goles, levantando a cabeça de vez em quando para tomar fôlego, eu ficava olhando um exame de borboletas amarelas que fazia ponto na grama do barranco, onde as lavadeiras jogavam espuma de sabão. Nesse dia uma delas se destacou das outras e veio esvoaçar em volta de mim. Não dei importância, esperei que o cavalo saciasse, instiguei-o com o calcanhar e tomei o caminho de volta. Já na estrada reparei que a borboleta seguia à minha frente, pousando ora na crina ora na testa do cavalo, ora circulando em volta de mim.
Não me interessava a borboleta, eu tinha a minha obrigação, meu pai esperava o cavalo e não gostava que eu demorasse. Mas de repente compreendi que aquele adejar insistente não era um mero capricho. A borboleta tinha uma mensagem para mim, estava escrita em suas asas, cheguei a ver uma ou outra palavra, que no entanto não consegui entender. Passei então a persegui-la com todo empenho, e ela sempre se esquivando. Matá-la com uma chicotada seria fácil, mas morrendo a borboleta a mensagem se apagaria automaticamente antes que eu tivesse tempo de conhecê-la. Talvez meu pai me ajudasse a pegar a borboleta, eu precisava ler a mensagem, que era importantíssima.
Infelizmente não pude contar com a ajuda do velho, ele também tinha as suas dificuldade, em nada menores do que a minha. Parece que ele andara consertando a estaca de amarrar animais que havia em frente a nossa porta e que ultimamente andava bamba; mas não sei que jeito deu que conseguiu prender o pé entre a estaca e o buraco, e ficou ali grudado. Com o esforço que deve ter feito para soltar-se a estaca que era fina engrossou e cresceu, ficou mais alta do que uma palmeira bojada. Era evidente que eu não podia contar com ele. Então entreguei-lhe o cabresto do cavalo e saí correndo atrás da borboleta, que positivamente me chamava.
Alcancei-a quando ela pousou na cerca e estendi a mão para apanhá-la; mas num salto gracioso ela passou para o outro lado. Havia uma abertura na cerca, ao que parece feita justamente para servir de passagem. Abaixei-me para passar... e foi então que vi aquela construção enorme, vermelha, imponente. Como fizeram isso aqui sem que eu soubesse? – pensei. Um senhor idoso que tomava sol em um banco em frente à casa prontificou-se a esclarecer-me.
Aquela casa fora construída pelo Cônsul de Belgartúlia, homem muito sábio e muito viajado. Os mais velhos ainda se lembravam daquele estrangeiro alto, corado, de bonita barba branca sempre muito bem aparada. Só se vestia de branco e nunca se separava de uma bengala, não para apoiar-se nela, mas para tê-la debaixo do braço. Apesar de muito rico, tinha a mania de procurar tesouros enterrados, passava semanas inteiras em excursões pelos morros, dizem que não sem algum proveito.
Então a casa devia guardar uma fortuna imensa, não havia outra explicação para uma casa daquele tamanho. Perguntei ao velhinho se ele a conhecia por dentro, ele respondeu que não, nunca tinha entrado lá, e essa era a sua grande tristeza. O senhor cônsul havia-lhe prometido essa graça, mas o deixava ali esperando. Não se sabia por onde andava, havia suspeita que tivesse se passado para o outro lado, mas pela conversa do velho percebi que eram rumores sem base, talvez nascidos do receio de que isso viesse a acontecer.
E o manso velhinho continuava esperando, talvez já só pelo hábito, ou pela falta de ânimo de levantar-se para cuidar de outra coisa. Observei-lhe que muito ele devia ter perdido enquanto esteve sentado naquele banco esperando, aliás já bastante puído pelo roçar de seus braços e de suas costas; ele respondeu que exatamente por isso não tinha mais interesse em sair.
- Perdi a promessa e perdi a festa - disse ele suspirando.
O que isso queria dizer não fiquei sabendo, mas aquelas palavras, ditas com grande desconsolo, ficaram em meus ouvidos como expressão de total desilusionamento.
Pensando dar-lhe uma compensação tardia, convidei-o a acompanhar-me numa visita à casa, uma vez que as portas pareciam abertas e não havia nenhum vigia à vista. Ele olhou-me com total indiferença e disse:
- É melhor não. O ouro tem muita tara.
Essa me bastou. Então o homem esperava anos pela oportunidade de visitar a casa, eu lhe dava essa oportunidade e ele se desinteressava? Desisti de entendê-lo e fui dar uma volta pela casa. Subi os degraus, amplos como escadaria de igreja, entrei pela porta do centro e achei-me num saguão já esse muito exíguo, apenas uma nesga entre a porta e um tabique de madeira, coisa própria de construção em andamento. No tabique havia uma portinha estreita fechada com arame.
Não tive tempo de abrir a porta. Uma algazarra de meter medo chamou-me a atenção para a rua. Corri para o buraco da cerca e vi grande número de soldados e civis, todos armados, correndo pela rua, saltando por cima da cerca, derrubando-a e invadindo o jardim. Iam apressados ao encontro de bandos inimigos que avançavam por um matinho ao fundo.
Para não ser atropelado pelo grosso da tropa que vinha atrás, juntei-me a eles e corri também, saltando buracos, troncos de árvore derrubada, um rego de água turva, mas me cansei porque um investigador de polícia, vindo não sei de onde, encostou-se comigo e queria a todo custo vender-me uma caneta. Eu o empurrava, sacudia a cabeça significando que não queria, mas ele não me largava, sempre mostrando a caneta. Tomei-a depressa para pagar depois, mas ele absolutamente não concordou.
- Pagamento à vista – disse ele. – Não estou para sofrer mais prejuízo. Compram-me canetas fiado, passam-se para o outro lado e eu fico de que jeito?
Procurei nos bolsos mas não achei dinheiro nenhum.
- Guarde a caneta para outra ocasião – disse eu, já armando o passo para sair correndo.
O homem agarrou-me pela aba do paletó e fincou os calcanhares no chão, puxando-me desesperadamente, quem visse pensaria que eu era a sua última esperança. Dei um safanão forte e joguei-o de costas no chão, mas ele era sempre assim, ninguém queria nem tocar em suas canetas, parecia até castigo.
- E ela escreve tão bem, quer ver, experimenta – disse ele, oferecendo-me a caneta do chão mesmo, e já pronta para escrever.
Peguei a caneta e ia escrever qualquer coisa numa caixa de fósforos quando apareceu meu irmão Domício, e com um tapa jogou-a longe.
- Você está doido? Não escreva com esta caneta!
E explicou-me que aquilo era uma cilada muito antiga, admirava-se de eu não conhece-la. O investigador era gente do outro lado, e estava procurando comprometer-me. Se eu chegasse a escrever com aquela caneta, estaria perdido.
-Você espere aí que eu vou dar uma lição nele – disse Domício e saiu correndo atrás do investigador.
Eu não podia ficar ali parado, com tantos tiros estralando em volta. Corri para um matinho de goiabeira, que ficava à direita do ponto onde os guerreiros tinham se sumido, e achei io lugar tão calmo e fresco que resolvi descansar um pouco e pôr as ideias em ordem. Olhei em volta mas não encontrei lugar onde pudesse me deitar nem sentar, o chão era um imenso lamaçal coberto de goiabas podres. A solução que encontrei foi pendurar-me no galho de uma goiabeira pela curva das pernas, a posição não era incomoda, e fiquei me balançando, vendo o mato em posição invertida, como em máquina de fotógrafo de jardim.
Eu estava quase fechando os olhos para dormir quando ouvi o cloc-cloc de uma pisada. Era um homem com todo o aspecto de mendigo, os sapatos rachados e forrados por dentro com jornal, o chapéu furado, o paletó muito maltratado, rasgado no peito e nos cotovelos. O homem tossia de perder o fôlego, e no intervalo dos acessos cuspia pedaços de uma substância esponjosa parecendo estopa suja. Vendo o meu espanto, ele apressou-se em acalmar-me, dizendo com a mão no peito:
-Quanto ao resto, ótima saúde.
Para não contrariá-lo eu disse: -Claro, basta olhar.
Mas por prudência desci da árvore e pedi licença para me retirar, o que fiz sem perda de tempo, atolando o na lama do brejo, e só parei quando achei que já havia posto boa distância entre nós dois.
Caminhei muito tempo descendo e subindo vales até dar em uma casa que reconheci imediatamente ser a casa do cônsul, mas vista do fundo. Era ocupada pela família de um Benigninho, meu companheiro de escola. A única pessoa que estava em casa era a irmã de Benigno, preparava o jantar para ele, que devia chegar a qualquer momento.
-Ah, foi bom você aparecer – disse ela. – Estou incomodada com o Benigno. Você sabe onde ele anda?
Como é que eu ia saber? Havia anos que eu não via o Benigno nem tinha notícias dele. Mas achei melhor não dizer isso à moça. Disse apenas que certamente ele não demoraria.
-Estou com medo que ele não venha. Tenho um pressentimento – disse ela. –Nem quero pensar.
Quando ela acabou de dizer isso um clarão muito forte, branco como luz de magnésio, iluminou todo o céu atravessando as paredes e o telhado da casa. Corremos para fora e vimos cruzando lentamente o céu no rumo do barranco do outro lado.
-Vai gente lá dentro! – gritou a irmã de Benigno, cutucando-me e mostrando.
Era verdade. Dentro de cada bolha fui distinguindo a figura de pessoas conhecidas, gente que eu via há muito tempo. Reconheci o escrivão Teotônio, meu tio Zacarias, mestra Júlia, Padre Leôncio coçando o ouvido com um palito – e um homem barbado, que só podia ser o cônsul – a roupa branca, a barba, a bengala enfiada debaixo do braço.
Deu-me pena vê-los prisioneiros daquelas bolhas, sendo levados para um lugar onde ninguém queria ir. Mas por que não iam tristes? Por que não reclamavam? Por que esfregavam as mãos, como se tivessem pressa de chegar? Até Benigninho, que na escola reclamava de tudo, ia risonho e contente. Quando o viu, a irmã deu um grito e apertou-me o braço com tanta força que eu tive de empurrá-la. Pode ser impressão, mas acho que Benigno percebeu o susto da irmã, pois olhou-nos, com um sorriso tão convincente que ela mudou logo a fisionomia
-Você viu? Você viu? Não dói! – exclamou ela.
Olhamos um para o outro como se tivéssemos acabado de fazer uma descoberta de enorme significação para o mundo, e falamos quase ao mesmo tempo:
-Quanto medo sem motivo! Quanto medo sem motivo!

J. J. Veiga. Os do outro lado. In: cavalinhos de Platiplanto – contos. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil. 20ª edição, 1997.


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