[Valid Atom 1.0] O Fantástico Literário na Web: 2011

26 de dezembro de 2011

Comentário do conto O Ex-Mágico da Taberna Minhota.

O estudo de uma obra a partir da perspectiva do fantástico pressupõe o estudo do conceito de fantástico e suas delimitações. Na literatura, o fantástico se desenvolve a partir de um certo abandono da racionalidade que por muito tempo imperou com o propósito de explicar o mundo e o indivíduo. O imaginário entra na literatura como uma nova possibilidade de abordagem de elementos inquietantes e inexplicáveis da realidade. De maneira geral, a primeira idéia que se estabelece com relação ao conceito de fantástico é que ele se define em relação aos conceitos de real e de imaginário. 
Desde o século XIX, foram muitas as definições formuladas, é possível citar como exemplo alguns trechos de textos recentes extraídos da obra Le Conte Fantastique en France de Castex "O fantástico ... se caracteriza por uma intromissão brutal do mistério no quadro da vida real" ou "a narrativa fantástica gosta de nos apresentar, habitando o mundo real em que nos achamos, homens como nós, colocados subitamente em presença do inexplicável". Rogger Caillois em Au Coeur do fantastique diz "Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana". Dentre tantas definições existentes a esse respeito podemos observar a recorrente citação de elementos como o "mistério", o "inexplicável", o "inadmissível" que se introduz na "vida real", ou no "mundo real", ou ainda na "inalterável legalidade cotidiana". Sendo assim, é possível formular a idéia de que o fantástico se estabelece quando, em uma narrativa, se dá um acontecimento inusitado que aparentemente não pode ser explicado pelas leis naturais mas, no entanto, não deixa descartada totalmente essa possibilidade.

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8 de dezembro de 2011

Herberto Helder, Teorema.


El-rei D. Pedro, o cruel, está na janela sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do Marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto um pouco a cabeça, torço o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico de meu Senhor. Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste no meio do tempo. D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus soldados. Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens. O rei olha para mim com simpatia.

Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o.
Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri. Preparem-me esse coelho, que tenho fome.O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.O que este homem trabalhou na nossa obra! Levou o cadáver da amante de uma ponta a outra do país, às costas de gente do povo, entre tochas e cantos fúnebres. Foi um terrível espetáculo que cidades e lugares apreciaram. Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor.
Levanto-me e fico bem defronte do edifício. Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.-Senhor,- agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.-Muito bem – responde o rei. Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-me. 
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Comentário do conto Teorema de Herberto Helder


 HerbertoHelder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica. Poeta, ensaísta e contista, Herberto Helder é autor de vários livros de poesia e de um único livro de contos – Os passos em volta - do qual colhemos “Teorema”. Ele é considerado um dos melhores poetas surgidos no século XX, em Portugal. Além disto, seu livro de contos já teve várias edições esgotadas e reeditadas.
O título da narrativa aponta a ambigüidade que percorre o texto, ensejando leituras diferentes a partir dos dois sentidos advindos dos significados de teorema. Na sua acepção mais evidente, como a veicularam as ciências matemáticas, teorema é uma proposição demonstrável a partir de axiomas, ou seja, uma proposição que, para ser admitida, precisa de demonstração que comprove a evidência da tese. Mas, existe uma forma de perturbar a lógica desse procedimento, por redução do teorema ao “absurdo”, inversão de caminho que, no entanto, chegará à mesma verdade. É este significado o que se coloca para a demonstração da tese que o autor levanta (via absurdo), ou seja: demonstrar, através da inversão da “verdade histórica” – ou daquilo que se tem como tal –, que o crime praticado por razões de Estado (ou políticas) tem uma outra verdade desvelável pelas vias do absurdo.
Tal inversão da verdade começa logo no primeiro parágrafo com as frases proferidas por Pero Coelho referindo-se à Inês de Castro: “Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o”. Ditas pelo assassino de Inês de Castro, tais palavras promovem a inversão da verdade histórica, desmentindo tudo o que foi asseverado pela história oficial e, por extensão, desconstruindo a imagem de Inês e a imagem de Pedro oferecidas por Camões e demais poetas que mitificaram Inês e sua trágica história de amor. 
 
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3 de dezembro de 2011

Murilo Rubião: Bárbara.


 "O homem que se extraviar do caminho da doutrina, terá por morada a assem
bléia dos gigante." - Provérbios, XXI; 16.

"Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava. Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. Não os retive todos na memória, preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição. Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu lhe dava, ou não engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacrifícios que fiz para lhe contentar a mórbida mania.
Quase da mesma idade, fomos companheiros inseparáveis na meninice, namorados, noivos e, um dia, nos casamos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples companheiros. Enquanto me perdurou a natural inconsequência da infância, não sofri com as suas esquisitices. Bábara era menina franzina e não fazia mal que adquirisse formas mais amplas. Assim pensando, muito tombo levei, subindo a árvores, onde os olhos ávidos da minha companheira descobriam frutas sem sabor ou ninhos de passarinho. Apanhei também algumas surras de meninos aos quais era obrigado agredir unicamente para realizar um desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto ferido, maior se lhe tornava o contentamento. Segurava-me a cabeça entre as mãos e sentia-se feliz em acariciar-me a face intumescida, como se as equimoses fossem um presente que eu lhe tivesse dado.

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Comentário do conto Bárbara, de Murilo Rubião.

O conto “Bárbara” tematiza a ambição humana, o desejo de ter tudo. Nele, a sucessão de desejos absurdos e incontroláveis, ao ponto de configurar um processo reiterativo e acumulativo, acentua a natureza incomum da personagem. De acordo com a estratégia adotada por Murilo Rubião, o caráter insólito de Bárbara não resulta apenas da sucessão dos absurdos pedidos que faz, mas, igualmente, dos efeitos fantásticos que eles geram, das, das constantes expectativas que provocam no antagonista e da relação de contraste entre o plano da excepcionalidade, que é o de Bárbara, e o plano da normalidade à sua volta, em que se inscreve o marido.
O caráter de excepcionalidade pode ser verificado, logo no meio do conto. Bárbara é dominada por exigências, caprichos e esquisitices que lhe provocam estranhas manias e que a levam a fazer extravagantes pedidos. Sua obesidade decorre de uma mórbida obsessão de pedir as coisas.
O marido, antagonista de Bárbara, como já foi dito, inscreve-se no plano da normalidade, o que se revela na sua atitude de constante expectativa com relação ao que pode advir da misteriosa esposa. Ele funciona como contraponto de Bárbara, cuja presença insólita configura o plano da anormalidade.

O efeito normalmente esperado para a falta de alimentos é a perda de peso e o enfraquecimento do corpo. Se este resultado é alterado e a falta de alimento passa a provocar aumento de peso, estamos diante de um efeito fantástico. Derivado da transgressão ao princípio da causalidade advinda da incongruência entre causa e efei

Outra transgressão ao princípio da causalidade ocorre quando ocorre a associação indevida de fatos: É normal que alguém manifeste seu desejo sob a forma de pedidos, como é normal que engorde. Não é normal que um fato desencadeie o outro.Bárbara pedia e engordava.
Há uma espécie de condenação no relacionamento das personagens. A incapacidade de afeto surge no tema da castração, fundamental mos contos de Murilo Rubião. Bárbara exemplifica bem essa castração. A relação marido/mulher não é de afeto, mas de medo por parte dele, de tirania por parte dela. O marido é mero objeto para satisfazer os caprichos de Bárbara.
A estrutura do casamento, enquanto união amorosa é desconstruída. O erotismo inexiste.

2 de dezembro de 2011

Murilo Rubião: Os dragões.

Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles no lugar. Poucos souberam compreende-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.
A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcisada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhe a qualidade dos dragões, “coisa asiática, de importação européia”. Um leitor de jornais, com vagas idéias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas-sem-cabeça lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas. O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto. Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A idéia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior aos dos pretendentes.
 Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: Os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados. Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me a calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado.
- São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!
Perplexos com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu a mão do batismo. Retribui o gesto, resignando-me à exigência de nomes.

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Comentário do conto Os dragões.

O escritor do fantástico pode fazer uso de vários recursos para a realizar a desconstrução crítica da realidade: seres exóticos, pitorescos ou extravagantes, objetos e situações insólitas, pessoas estranhas que praticam ofícios inusitados, dentre outros. No conto - Os dragões - a convivência pacífica do natural com o sobrenatural assume um caráter de normalidade, não causando espanto no leitor a relação normal que se estabelece entre os dragões e as pessoas da cidade. Assim uma situação insólita se extingue desde o início da narrativa, quando o narrador acusa os habitantes da cidade de não terem habilidade para uma convivência perfeita com os animais, por causa da deficiência cultural dos moradores, que não lhes propiciava os meios para educarem os dragões.
Considerando que o fantástico não é inocente de significados, constituindo-se como uma estratégia critica, a presença dos dragões na sociedade humana ocorre para que esta seja criticada através dos seus elementos. Os dragões cumprem sua função de ativar na pequena comunidade os preconceitos, as intolerâncias e as atitudes irracionais dos seus moradores.
O conto questiona a idéia de que os homens sejam do ponto de vista ontológico, superiores aos animais. A sua intencionalidade crítica visa atingir, também, a questão ética, na medida em que procura demonstrar que a convivência com os homens corrompe os animais, levando-os a assimilar seus vícios e a adotar os seus comportamentos e atitudes equivocados. Assim sendo, a narrativa muriliana desconstrói a idéia arraigada de que uma conduta eticamente positiva seja privilégio dos humanos.
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Zenóbia Collares Moreira

22 de novembro de 2011

Murilo Rubião: Botão-de-Rosa.

“Aroma de mirra, de aloés e cássia exala de tuas vestes, desde as casas de marfim.”
Salmos, VLIV, 9.

Quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de Rosa sentiu que era um homem liquidado. Entretanto não se preocupou, aborto em pentear os longos cabelos. Concluído o penteado, passou a alisar a barba com uma escova especial umedecida em perfume. Nesse instante ouviu gritos vindos da rua. Não distinguia bem o que gritavam, mas de uma coisa estava certo: vinham pegá-lo. – Deu de ombros e buscou uma fita colorida para prender a cabeleira.
Antes de despir a camisola de seda, escolheu para o dia o seu melhor traje: uma túnica branca, bordada a ouro dos companheiros do conjunto de guitarras – Molinete, Zelote, Judô, Pedro Taguatinga, Simonete, Bacamarte, André-Tripa-Miúda, Íon, Mataqueus, Pisca, Filipeto e Bartô – com os quais acertara novo encontro no Festival. Até lá Taquira teria o filho. (Fora obrigado a separar-se da companheira porque os pais recusaram a recebê-lo em casa, alegando que não eram casados. Teve, à época, vaga premonição de que jamais se reencontrariam.)
Separou as meias, o cinturão de fivela dourada e procurou uma sandália que combinasse com o vestuário. Sua escolha recaiu numa de solas grossas, apropriadas ao péssimo calçamento da cidade.
O clamor crescia lá fora, aumentava-lhe a impaciência: não podiam esperar que acabasse de se aprontar? Ou temiam pela fuga? Malta de ignorantes, como poderia fugir? Antes que apelassem para a força, procurou acalmá-los, mostrando-se na varanda. A turba emudeceu à sua presença. Fez-se um silêncio hostil, os olhos enfurecidos cravados na sua figura tranqüila. Um moleque atirou-lhe uma pedra certeira na testa e a multidão de novo se assanhou: Cabeludo! Estuprador! Piolhento!
Quando compreenderiam? – Retrocedeu até a sala. Não por covardia, apenas para estancar o sangue que começava a descer pela face e certamente lhe mancharia a roupa. Medicava-se ainda e ouviu baterem na porta. Era o sargento, comandante do destacamento, acompanhado de seis soldados e um mandado de prisão. Nem leu o papel. Alçando a mão, num apelo mudo, para que o esperassem, voltou ao quarto. Após jogar suas coisas na maleta, colocar nos dedos os anéis e no pescoço os colares, seguiu os policiais.
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Comentário do conto "Botão - de - Rosa".


No conto Botão-de-Rosa, Murilo Rubião aborda o tema da Justiça. O personagem central, que tem o mesmo nome do conto, é preso sob a insólita acusação de ter seduzido, estuprado e engravidado todas as mulheres da cidade, ao mesmo tempo. Como escreve Audemaro Taranto Goulart, o Juiz que condena Botão-de-Rosa é uma perfeita metáfora do autoritarismo do indivíduo que estando investido de poder, aproveita-se de sua situação de superioridade para manipular a justiça. Tal figura exemplifica bem a autoridade que exorbita, tão comum no cotidiano de todos. Fica claro que ela não representa a razão, mas, ao contrário, é um exemplo perfeito da desrazão. (In: O Mundo Fantástico de Murilo Rubião. Ed. Lê. Belo Horizonte, 1995).
A narrativa, ao revelar que “quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de-Rosa sentiu que era um homem liquidado”, revela também ter havido uma transgressão em termos daquilo que a norma social estipulado: ter engravidado todas as mulheres de uma cidade.
O efeito insólito provoca no leitor a sensação de estranhamento, detém sua atenção e o força a uma leitura ideológica. Aliás, em “O Convidado”- conto de Rubião – a atmosfera geral fica muito mais densa, mais viscosa, se comparada com as narrativas anteriores do autor. A sensação sinistra consegue atingir efeitos sociais bem mais corrosivos. O elemento confirmador dessa possibilidade crítica é o julgamento de Botão-de-Rosa. As argumentações para provar ou não sua inocência perdem totalmente o sentido tradicional; não pela inverossimilhança que elas propõem (Ex. ”As penas variavam entre dez anos de reclusão, prisão perpétua ou morte. José Inácio ficou boquiaberto. Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás! Ou teria estudado em outros livros?”), mas pela aguda crítica que o texto propõe. Uma leitura linear de um processo judicial semelhante (que conduziria ao inevitável questionamento: inocente ou culpado?) fica totalmente diluída e abafada pela leitura subjacente. O que interessa é o modo pelo qual o julgamento se articula, desencadeando a percepção de uma denúncia implícita ao texto. Ex.: “Se [o juiz] decidiu que esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as provas necessárias à sua condenação”.
A rejeição de Botão-de-Rosa por parte do povo provoca nos leitores uma crítica aguda à atitude responsável por esta rejeição. “Antes da vinda desse marginal nosso povo tinha hábitos saudáveis, desconhecia os vícios das grandes metrópoles.” A inversão é latente. Quem acaba sendo marginalizado pela crítica é o “povo” e não o “marginal”.
O código religioso, que permeia toda a obra de Murilo Rubião através das epígrafes bíblicas, como unidades redutoras dos contos, ressurge com toda sua força em Botão-de-Rosa. A associação com a figura de Cristo é imediata e inevitável. Seja através de suas ações como dos seus atributos. (As roupas são os primeiros indícios caracterizadores: “longos cabelos”, “túnica branca”, “sandália”, etc.) Os seus “companheiros do conjunto de guitarras” são exatamente doze, simbolizando os apóstolos. Mais ainda, Botão-de-Rosa é traído por um deles (restaurando-se assim a tradição da figura de Judas), e o seu comportamento obedece ao mais elevado dos estoicismos (“um pobre diabo que de negava a defender-se e nem se importava com sua própria condenação”), enquanto sua morte catalisa os pecados do homem (no caso, ironicamente descritos na gravidez das mulheres), e sua pureza, referencializada através do próprio nome, se manifesta simbolicamente no despojamento total revelado pelo momento de sua morte: “desnudo, ofereceu o pescoço ao carrasco”.
Deste modo, vemos como o fantamasgórico e o inverossímil encobrem subtextos que elucidam possibilidades de leitura. E não seria ousado afirmar que o texto “fantástico”, em Murilo Rubião, mascara a mais realista das literaturas.
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Autoria do comentário: Jorge Schwartz. In: Do fantástico como máscara, p. 13 e 14


7 de novembro de 2011

O Galo Impertinente. Conto de J. J. Veiga

Todo mundo sabia que se andava construindo uma estrada naquela região, pessoas que se aventuravam por lá viam trabalhadores empurrando carrinhos, manobrando máquinas ou sentados à sombra, cochilando com o chapéu no joelho ou comendo de umas latas que a empresa fornecia; diziam que eram rações feitas em laboratórios, calculadas para dar o máximo de rendimento com o mínimo de enchimento. Quem viajava de automóvel conseguia interromper a atividade dos engenheiros, eles vinham solícitos com o capacete na mão dar explicações, mostrar o projeto no papel, esclarecer o significado de certos sinais que só eles entendiam. Mas a obra estava demorando tanto que nos habituamos a não esperar o fim dela; se um dia a boca da estrada amanhecesse com uma tabuleta novinha convidando o povo a passar, acho que ninguém acreditaria, imaginando tratar-se de brincadeira.
Com o passar do tempo os engenheiros foram ficando nervosos e mal- humorados, dizia-se que eles desmanchavam e refaziam trechos enormes da estrada por não considerá-los à altura de sua reputação. Não estavam ali construindo uma simples estrada; estavam mostrando a que ponto havia chegado a técnica rodoviária. Houve protestos, denúncias, pedidos de informação, mas como as autoridades não sabiam mais de que estrada se tratava, nenhuma resposta era dada; e mesmo que respondessem seria em linguagem tão técnica que ninguém entenderia, nem os mais afamados professores, todos por essa altura já desatualizados com a linguagem nova.
Quem tinha de atravessar a região ia abrindo picadas pelo mato, passando rios com água pelo peito, subindo e descendo morros cobertos de malícia e unha-de-gato. Quando se perguntava a um engenheiro mais acessível quando era que a estrada ia ficar pronta, ele fechava a cara e dizia secamente que a estrada ficaria pronta quando ficasse.
Um dia — as preocupações eram outras, ninguém pensava mais no assunto — anunciaram que a estrada afinal estava pronta e ia ser inaugurada. Depois de uma inspeção preliminar feita altas horas da noite à luz de archotes (com certeza para evitar entusiasmos prematuros), marcou-se o dia da inauguração com a passagem de uma caravana oficial

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Comentário do conto "O Galo Impertinente"..

O conto “O Galo Impertinente” apresenta a história da construção de uma estrada e do mistério ligado a ela. A construção da estrada, que deve apresentar o alto nível da tecnologia rodoviária, cria muita curiosidade em todas as pessoas que vão visitar as obras. Os engenheiros explicam-lhes pacientemente todos os detalhes técnicos do projeto, mas a construção demora muito, as pessoas perdem o interesse e os trabalhadores a motivação. 
Depois de muito tempo da construção, quando ninguém se lembra mais dela, a estrada fica pronta e vem o dia da inauguração. Toda a gente adora a estrada e considera-a magnífica. Mas o entusiasmo não dura muito. Logo no dia seguinte aparece um galo estranho que ataca os carros e destrói-os. Os viajantes têm medo dele e evitam passar por essa estrada. As pessoas estão assustadas e resolvem caçar o galo. Primeiro tentam apanhá-lo numa rede de pesca e depois até usam armas, mas sem nenhum resultado. Por isso pedem ajuda ao ministério da guerra que manda um canhão que não tem sucesso e um tanque que começa a soltar fumaça sem qualquer razão 19 óbvia e fica fundido. A estrada então fica abandonada e esquecida no tempo.

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6 de novembro de 2011

Murilo Rubião: A Armadilha

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez. Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana. Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga.
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Comentário do conto A Armadilha, de Murilo Rubião.

“A armadilha” é uma das narrativas mais enigmáticas de Murilo Rubião. Construída com base na ambigüidade e no suspense, ela desconstrói os esquemas da lógica do senso comum, instaurando, desde o seu início, a incerteza própria do gênero fantástico. A personagem Alexandre Saldanha Ribeiro, mesmo carregando uma mala pesada, rejeita o elevador e usa as escadas para chegar ao décimo andar de um prédio desabitado, sujo e decadente. Ao entrar na sala que buscava, uma grande surpresa o aguarda: um velho está a sua espera empunhando um revolver na sua direção. Este fato inesperado gera no leitor a justificada expectativa de que Alexandre seria assassinado. 
 Isto não é o que ocorre, mas sim um inusitado diálogo entre o velho e Alexandre, iniciado pelo velho: “... esperava a sua vinda. Há dois anos, desta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.” A partir daí, uma seqüência de fatos inverossímeis vão se sucedendo, instaurando a incerteza que caracteriza as narrativas "fantásticas", nas quais o elemento “misterioso” intervém no curso normal dos fatos, resultando em uma ruptura, em um “suspense” instigantes: a arma descarregada, as janelas fechadas com tela metálica, a porta de aço trancada eliminando qualquer possibilidade de fuga para Alexandre, tirando-lhe a chance de escapar à situação de prisioneiro, de vítima de uma armadilha, na qual ficará para sempre: “Aqui ficaremos, um ano, dez, cem ou mil anos.” 
O desvendamento do mistério não ocorre no final do conto. A ambigüidade permanece até o final da história, deixando que o leitor faça a dedução dos fatos finais.
 Em “A Armadilha”, nenhuma explicação é dada aos fatos estranhos e o final da história é inconcluso e ambíguo. Todavia, não estamos diante de um texto que pretende ser mera diversão ou passa tempo vazio de significado. 
Como costuma acontecer nas obras murilianas, este conto veicula uma crítica de cunho moralizante à realidade do mundo contemporâneo. Suas personagens tipificam a condição absurda em que vive o homem, prisioneiro de uma sociedade na qual imperam a incomunicabilidade e a solidão, como inapelável conseqüências da existência humana. 

 Zenobia Collares Moreira.


3 de novembro de 2011

Lygia Fagundes Telles: As Formigas.

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada
Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona avisara-nos por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. 
- É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção. - Estudo Direito. Medicina é ela.
A mulher examinou-nos com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina,tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos de entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
- Ele disse que era de adulto. De um anão.
-De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados...
Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!

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- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui do lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou coçando a cabeça. [...]
- De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louco de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! Mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas.
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está ai no chão do caixote, com um omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
_Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que ela levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
[...] às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão; desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. 
- E as formigas?
- Até agora nenhuma.
- Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
- Eu?! Quando acordei não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo… O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco do silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
- Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei para fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas traçando lá dentro, lógico, mas não foi isso que me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... estão se organizando.
- Como, organizando?
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e.... venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
 Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde da noite, um colega tinha casado e teve festa. [...]
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
- Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram – ela disse.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos de sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha; nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro quem vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
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Lygia Fagundes Telles.

Comentário do conto As Formigas, de Lygia Fagundes Telles

Neste conto tem-se um narrador autodiegético, pois a própria narradora-protagonista é quem vivencia a história contada. Tem-se aqui perspectiva narrativa ou focalização da personagem principal, já que sua ótica direciona a ótica do leitor.
A primeira frase do conto avisa que "já era quase noite", indicando que a história se desenrola à noite ou ao menos em parte. A expressão "quase noite" aponta para o fato de que a luz do dia estava indo embora para ceder lugar ao mundo da escuridão. A ênfase no tempo da noite é dada ao longo de todo o texto. É durante a noite que os fatos ocorrem, como se as personagens não existissem durante o dia. As referências diurnas são rápidas.
Não há comentários sobre os acontecimentos do dia, como se as aulas não tivessem importância. A história transcorre ao longo de um período de três noites e dois dias: não há o fechamento de um ciclo, pois este é interrompido antes de se completarem quatro – representação da totalidade. As garotas descem do táxi em frente à pensão, um velho sobrado que parece esconder alguma verdade angustiante, dada sua aparência, tanto que paralisa por momentos as duas personagens: ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. A intuição inicial preludia algo inquietante: "sinistro", diz uma delas, ante o impacto. A narradora compara as janelas da fachada da casa a olhos, qualificando-os de tristes, estando uma delas com os vidros quebrados.

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Após subirem a escada velhíssima, cheirando a creolina, são recebidas pela velha dona da pensão, que também transmite uma imagem de decadência: o desbotado pijama, as unhas aduncas de esmalte vermelho-escuro descascado e de pontas encardidas, chinelos de salto, tosse encatarrada, peruca negra, balofa. Solta baforadas fortes de charutinho no rosto das meninas. Além de apresentar um aspecto feminino abandonado, sem nenhuma vaidade, tem atitudes que não demonstram tendência maternal positiva alguma com suas novas hóspedes, já que as examina com indiferença e descaso. Ela parece encarnar o protótipo da feminidade terrível, da mulher nefasta e não-acolhedora do regime diurno da imagem: soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara.
As primas entram na sala, primeiro aposento descrito pela narradora. Toda a descrição de seu interior faz crer num ambiente decadente e estranho: saleta escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilhos.
Não havia, entretanto, outra opção de escolha, pois nenhuma outra pensão oferecera condições e preço tão acessíveis às duas garotas. A velhota as convida para conhecer seu pequeno quarto localizado no sótão, ao qual se sobe através de uma escada de caracol muito estreita. O simbolismo da escada se liga à passagem de um nível a outro, estabelecendo relações de ascensão e valorização. É também a representação da graduação da passagem de níveis existenciais/psicológicos a outros. É necessário subir esta estreita escada em espiral para chegar ao minúsculo quarto, lugar onde acontecerá uma transformação de nível espiritual para material - uma inversão, portanto. A escada contribui para este clima estranho de uma montagem de um esqueleto que surgirá depois.
Conto fantástico que nos faz entrar no universo da autora e suas constantes viagens pelo universo feminino, talvez o mais sensível ou disponível para prestar atenção às questões da existência. Trata-se de duas primas universitárias, uma delas a narradora, que se vão instalar num quarto alugado numa casa tão decrépita quanto a sua dona, que, apesar da idade, usa uma destoante peruca preta (é interessante notar que a descrição que se faz da peruca (era mais negra que a asa da graúna) estabelece uma intertextualidade com Iracema, de José de Alencar. Esse recurso é muito comum na obra, havendo referências que vão de Olavo Bilac até à Divina Comédia).
Curioso é perceber que não há presença masculina alguma no texto, apenas a menção a um antigo inquilino do quarto em que as meninas estão se instalando e os ossos que ele havia deixado no cômodo. Uma das garotas, estudante de Medicina, interessa-se pelos restos, ainda mais quando descobre que são de um anão, o que os torna de extrema raridade. O mais incrível é que no meio da noite o quarto das moças é tomado por um cheiro ruim (bolor?) e por formigas que não se sabe de onde vêm, mas que se dirigem claramente para o recipiente em que estavam guardados os ossos, justamente embaixo da cama (esse lugar é riquíssimo de simbologia psicológica, estando ligado ao inconsciente e a pensamentos que são exilados, escondidos lá. Haveria aqui uma menção à sexualização, constantes nos sonhos da protagonista?) da estudante de Medicina.
E, para aumentar o tom macabro, a narradora havia sonhado com um anão (os ossos corporificados) de olhos azuis a olhar para ela. Eis uma presença masculina inquietante. Quando a prima da narradora vai verificar se não havia algum resíduo que na caixa que pudesse atrair as formigas, nota que os ossos tinham sua posição mexida, pois a cabeça, que estava no fundo, passara para a posição superior. Matam os insetos. No dia seguinte, não há resto algum deles, sendo que ninguém havia feito a limpeza do quarto. Na madrugada seguinte, quando a protagonista tem outro pesadelo, em que havia marcado encontro com dois namorados no mesmo local e hora, é acordada pela prima, que comunica o retorno das formigas.
E, completando o clima assustador, os ossos haviam mudado mais uma vez de posição, estando a cabeça entre os ombros e a coluna recompondo-se. Estaria então o anão se reconstituindo. Diante desse mistério, a futura doutora resolve passar a noite em claro e descobrir de onde vinham as formigas. Mas adormece, assim como a narradora. Esta última é acordada aos sustos pela parenta. As formigas haviam voltado e o esqueleto estava quase reconstituído, faltando apenas um osso da perna e outro do braço. Fogem desabaladamente da casa.
Neste conto se classifica uma situação de ironia na descrição da dona da pensão, em sua frustrada tentativa de aparentar uma juventude inexistente, resultando em uma quase caricata mulher.
Em todo o conto, o tema das oposições se faz presente, em uma tensão dualística que vai num crescendo, através das dialéticas luz/escuridão, ordem/caos, sono/vigília, realidade/sonho, vida/morte, humano/ inumano, curiosidade/temor, contedo/continente. Quando se fala da ambigüidade da narrativa fantástica, é que o protagonista-narrador é aquele que designa a duplicidade da narração fantástica e a contradição que ele imprime à obra.
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Aila Sampaio, autora do livro “Os fantásticos mistérios de Lígia”. Editora Expressão Gráfica, 2009

31 de outubro de 2011

Murilo Rubião: A Flor de Vidro.

E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz.” – Zacarias, XIV, 7. 

Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cin-zen-tos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. 
A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Ma-ria-li-ce, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante. — Marialice! Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta da Rosária ou do seu pensamento. — Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!
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Comentário do conto A Flor de Vidro



Aos recursos murilianos usados na formação do fantástico em A Flor de Vidro são a Inadequação de propriedades e a ambigüidade. A Inadequação de propriedades consiste em atribuir a um objeto qualidades que não lhe são próprias, projetando-o assim na realidade fictícia completamente transformado em sua essência. 
No conto A Flor de Vidro encontramos com freqüência seres, mortos que continuam vivos(O pirotécnico Zacarias), animais que falam (Os dragões, Teleco, o coelhinho), flores que nascem de corpos humanos (Petúnia), sentimentos que se materializam, etc. 
Em A Flor de Vidro, Murilo Rubião utiliza esse recurso da troca de propriedades materiais para entidades essencialmente imateriais, rompendo as fronteiras entre matéria e espírito, como pode ser observado no primeiro parágrafo do conto. 
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Maria Ondina Braga: A Filha do Diabo.


Era uma vez uma rainha que carregava consigo o maior dos opróbrios: ser estéril. Uma rainha piedosa e exausta de tanto ter invocado em vão os favores do Céu: Eis aqui a escrava do Senhor!... Recorrendo, obstinada e fervorosa, aos mediadores divinos: Santa Rita de Cássia, advogada das coisas impossíveis, Santa Margarida de Antioquia, mártir. Uma santa que concebera da Hóstia Consagrada (ou da lua?), os olhos em alvo de mística. A rezar, a penitenciar-se, a jejuar, a oferecer esmolas, a acender velas votivas, a rainha, e o seu ventre seco. Os anos, entretanto, a escoarem-se. O rei idoso e afundado no mar de vícios da governação. E o reinado sem descendência. E a raça no fim. Nossa Senhora do Ó. Novenas, missas cantadas, responsos, oblações. E outra vez Santa Rita de Cássia, Santa Margarida de Antioquia. E um santo lá das Arábias (santo ou mago?) por intermédio de quem a soberana do Sabá alcançara de Salomão: Porque os lábios da mulher alheia destilam mel / e a sua boca é mais suave do que o azeite... Condes, duques, gentis-homens a toda hora a rodeá-la, a cortejá-la.  Mas...  e a honra de sua majestade? E a modéstia cristã?
Assim do inverno à primavera, da primavera ao inverno. As primeiras neves nas fontes. As primeiras rugas na face. Vendo-se certa ocasião na bandeja de prata polida que uma serva lhe chegou com um copo de água, apercebeu-se de um bico sob o queixo. Deixou de dormir. E se passava pelo sono, sonhava com anjos que a embalavam sobre nuvens brancas e frias como lages fúnebres.Anjos de calção, braços nus, penteado à donzela: os mesmos que, na capela-mor, velavam o Santíssimo? E belos e capados como os eunucos do palácio. Acordava gelada, a sondar as pancadas do coração, com medo de já estar morta.

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30 de outubro de 2011

Comentário do conto de Maria Ondina Braga, A Filha do Diabo.


Publicado na década de oitenta do século anterior, o conto “A Filha do Diabo” é um texto acentuadamente crítico. Fazendo uso do “fantástico” e, em certos aspectos, de elementos do “maravilhoso”, a narradora constrói um painel dos desconcertos dos poderosos, das incongruências e superficialidade da religiosidade católica e da condição feminina na sociedade.
Todavia, apesar das oscilações religiosas da Rainha, a narrativa não presume um enfoque maniqueísta, não levantando, portanto, a questão da luta entre o “Bem” contra o “Mal”, entre Deus e o Diabo. Não há conflito entre essas duas forças. A Rainha simplesmente, por conta da sua desilusão com os santos que ignoraram suas preces e pedidos, por seu livre arbítrio aliou-se ao Diabo, visando à obtenção do que, para ela, constituía um bem supremo, uma defesa aos interesses do trono, ou seja: engravidar, dar um herdeiro para a coroa. Na verdade, para ela, ser mãe não significava a realização de um desejo de mulher, mas sim o cumprimento de uma quase obrigação de sua condição de rainha.
Fica implícito que o Reino (metáfora do Estado e do Poder) tanto poderia escolher Deus como preferir o Diabo, de acordo com os seus interesses políticos. Assim, a defesa dos interesses do Reino, não caberia qualquer tipo de escrúpulo. Os interesses da coroa estavam acima de tudo e de todos. Daí o adultério da Rainha, visando conceber um herdeiro para garantir a continuidade do trono.  Na luta pela preservação deste, vale tudo, não importa que o parceiro seja o Diabo.

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Comentário do conto A Máquina Extraviada



A obra de José J. José J. Veiga fez sua estréia em 1959, doze anos depois do precursor do fantástico no Brasil, Murilo Rubião. Sua obra Veiga é normalmente associada à literatura fantástica ou ao chamado realismo maravilhoso latino-americano do século XX.
A narrativa do conto, que leva o mesmo título do livro, tem como centro gravitacional da ação um fato insólito: o súbito aparecimento de uma enorme máquina em um povoado, trazida em caminhões por desconhecidos mal humorados, silenciosos, agressivos e pouco interessados em dar informações sobre a procedência da máquina.
O artefato foi armado na frente da prefeitura, sem que ninguém soubesse quem o enviou ou quem o solicitou, para que ela serve e como funciona. As autoridades locais não a solicitaram e, como o restante da população, desconhecem quem é o responsável pelo estranho objeto, enigmático, imóvel e sem utilidade que não seja a de servir de decoração.
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18 de outubro de 2011

Murilo Rubião: O Pirotécnico Zacarias

"E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela-d'alva.”..(Jó, XI, 17)

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?...A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo - o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado. A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma palavra.
Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente. A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.
- Simplício Santana de Alvarenga!....
- Presente!....
Senti rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.
- "Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao tempo tirem os seus chapéus!”.
(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.)....
- Simplício Santana de Alvarenga!.
- Não está?.
- Tire a mão da boca, Zacarias!.
- Quantos são os continentes?
- E a Oceania?.
Dos mares da China não mais virão as quinquilharias.
A professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam D. Josefina a ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de barbante, quase encostada no teto.....
- Simplício Santana de Alvarenga!....
- Meninos, amai a verdade!....
A noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu. Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio. O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite que o branco desceria até a terra.
As moças que vinham no carro deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o melhor destino a ser dado ao cadáver.

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Comentário do conto O Pirotécnico Zacarias.

O Pirotécnico Zacarias é um dos melhores contos de Murilo Rubião. Nele, temos um narrador autodiegético (um narrador que protagoniza a história que narra) e que, considerando se trata de um “morto vivo”, instaura o efeito fantástico na narrativa, na medida em que, paradoxalmente, narra a própria morte, movimentando-se em um plano no qual estão eliminados os limites entre VIDA e MORTE. Tal condição abre espaço para Zacarias transitar livremente de um estado para outro, além de permitir que ele viva simultaneamente esses dois estados antagônicos e inconciliáveis.
Esta insólita situação rompe radicalmente com o princípios da lógica, resvalando para uma inconcebível contradição, na proporção em que contraria o princípio estabelecido segundo o qual duas proposições que mutuamente se contradizem não podem ser consideradas verdadeiras e, portanto, jamais será possível afirmar e negar concomitantemente a mesma coisa, sob pena de provocar uma negação do real. A transgressão de tal princípio significaria o advento de uma nova lógica que irromperia sob a égide do princípio da contradição, via absurdo.
Esta lógica contraditória e insólita é a que rege a instauração do fantástico muriliano neste conto, na qual qualquer tipo de diferença é banida, permitindo que estados tão diferenciados, antinômicos e inconciliáveis sejam nivelados, confundindo-se no indizível do fantástico.
No próprio conto são levantadas algumas respostas lógicas pelas personagens que tentam encontrar uma explicação para o inusitado fato que testemunham. Daí o surgimento de indagações: “Teria morrido o pirotécnico Zacarias?” As possíveis explicações lógicas e verossímeis são dadas na narrativa, à guisa de excluir ou dirimir o paradoxo instaurador do fantástico. Duas hipóteses de explicação, que reduziria o efeito fantástico a um mero fato natural, sem mistério, são discutidas:

1) O pirotécnico estaria vivo e o morto não passava de alguém parecido com ele.
2) O pirotécnico estaria morto e o vivo era alguém parecido com ele.

Ora bem, a escolha, pelo leitor, de qualquer uma das sugestões dissolveria o paradoxo e, consequentemente, excluiria o elemento fantástico. Todavia, se, por um lado, ambas as escolhas são lógicas e coerentes, ambas neutralizariam o efeito fantástico, por outro lado elas são igualmente possíveis. Sendo assim, a ambigüidade típica do fantástico permaneceria: O pirotécnico poderá estar vivo ou poderá estar morto.
O conto questiona a condição existencial do homem, a sua condição dramática, a sua tragédia individual: Zacarias só tem a sua existência reconhecida depois que morre. Quando era vivo, todos o ignoravam, nunca o perceberam como um ser humano. Ele passa a ter existência no âmbito do trágico.
O texto convida a uma reflexão sobre a realidade humana. Afinal, o que é o homem antes e depois de sua morte? Em qual das duas condições ele existe mais? Esta resposta cabe aos leitores responderem.
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Imagem na postagem: Foto de Murilo Rubião.




16 de outubro de 2011

O Fantástico Literário


No fantástico literário podemos de distinguir três propostas estéticas:

1) a do Fantástico Tradicional;
2.) a do fantástico neomitológico;
3.) a do Realismo Mágico.

O FANTÁSTICO TRADICIONAL, proveniente da Europa, é teoricamente bem definido e estudado por vários autores europeus, dentre os quais se distingue Tzvetan Todorov.[1] Segundo esse autor, o fantástico se instaura quando a realidade cotidiana é invadida pelo elemento sobrenatural, podendo ainda ser propiciado por alucinações, delírios, pesadelos, loucura ou por manifestações que não podem ser explicadas pela ciência ou pela razão humana das personagens.
Roger Callois aponta várias classes temáticas recorrentes no fantástico tradicional: “o pacto com o demônio; a alma penada que exige para seu repouso que uma certa ação seja realizada; o espectro condenado a caminhar eterno e desordenado; a morte personificada, aparecendo no meio dos vivos; a “coisa” indefinível e invisível, mas que pesa, que está presente; os vampiros; a maldição de um feiticeiro que provoca uma doença espantosa e sobrenatural; a mulher-fantasma vinda do além, sedutora e mortal, etc.”[2]

NO FANTÁSTICO NEOMITOLÓGICO, segundo as informações de Fábio Lucas Pierini, é originário dos Estados Unidos, os autores introduzem em suas narrativas uma série de criaturas inumanas aparentemente desvinculadas dos mitos etno-culturais-religiosos e outros seres lendários já existentes. Essa vertente do fantástico resultou de um esforço conjunto dos autores americanos do norte em construir uma literatura que viesse a ser completamente desvinculada da européia. Não possuindo um passado nacional de onde retirar seus mitos, lendas e outras crenças e, recusando a influência da cultura indígena nativa, bem como a dos povos africanos escravizados, viram-se forçados a criar uma nova mitologia, quando na verdade estavam apenas dando nova roupagem ao que tinham como referências. [3]

O REALISMO MÁGICO, surgido, em 1925, com esse nome no âmbito das artes plásticas, entre pintores do pós-expressionismo alemão. A intenção deles era revelar os objetos cotidianos sob uma nova perspectiva., o termo passou a ser aplicado à toda manifestação literária fantástica oriunda da América Latina.
Segundo Irlemar Chiampi, o realismo mágico tornou-se “um achado crítico-interpretativo, que cobria, de um golpe, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (mágica) da realidade”.[4] Contudo, a autora recusa a expressão “realismo Mágico”, de uso corrente na crítica hispano-americana, preferindo substituí-lo pela expressão “realismo maravilhoso”, no seu entender mais adequado à realidade latino-americana.[5]
As narrativas de Murilo Rubião não podem ser compreendidas a partir dos modelos narrativos e das teorias do fantástico tradicional, do mesmo modo que não lhe servem as teorias que orientam a leitura do fantástico neomitológico e do realismo mágico (ou do realismo maravilhoso).
Como acontece com a obra de F. Kafka, a obra muriliana insere-se em uma outra variante do fantástico que se enquadra nos modelos antes referidos. Como bem observa Audemaro Taranto Goulart, “basta abrir qualquer livro de Murilo Rubião para perceber-se, às primeiras cenas, que se transita no terreno do absurdo”.[6]
O elemento fantástico nos contos de Murilo Rubião dilui as relações tradicionais do texto com o receptor, integrando o leitor dentro de um universo alicerçado num absurdo verossímil. A ausência de perplexidade, a anulação do espanto, frente ao fato insólito, sobrenatural ou absurdo faz com que a narrativa muriliana afirme-se em sua modernidade.

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Notas

[1] Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica, S. Paulo: perspectiva, 1975.
[2] Roger Callois, citado por T. Todorov, Op. Cit., p. 109.[3] Fábio Lucas Pierini, Infantil e adulto: dois fantásticos em José J. Veiga
[5](http://www.literaturafantastica.hpg.ig.com.br/)
[4] Irlamir Chiampi.O realismo maravilhoso, S. Paulo: Perspectiva, 1980, p. 19.
[5] Irlemir Chiampi explica a sua opção pela expressão realismo maravilhoso Poe ser esse termo já consagrado pela Poética e pelos estudos crítico-literários em geral, e se presta à relação estrutural com outros tipos de discurso (o fantástico, o realista). O termo “mágico”, ao contrário, é tomado de outra série cultural e acoplá-lo a realismo implicaria ora uma teorização de ordem fenomenológica (a atitude do narrador), ora de ordem conteudística (a magia como tema). Op. Cit,. P. 23.
[6] Audemro T. Goulart. O contofantástico de Murilo Rubião, p. 25.

14 de outubro de 2011

J.J.Veiga e Murilo Rubião: representantes do fantástico brasileiro

 
O fantástico de Murilo Rubião talvez seja mais intelectual. Os seus fantasmas são mais concebidos pelo espírito... Ao passo que os de Veiga são fornecidos pelo real, pelo folclore nacional, pelas crenças populares, já que as suas personagens são construídas de gente simples e humilde de nosso hinterland. Nesse sentido, os seus contos chegam a ser até regionalistas. Bastante brasileiros mesmo,
Assim como na obra de Murilo, o fantástico de J.J. Veiga não apresenta fadas, fantasmas ou demônios; o que se revela é uma trama de situações dolorosas que conduz ao absurdo. A atmosfera que paira nos contos de Veiga é de opressão e desespero, fruto de uma tensão desencadeada pela alegoria que denuncia a violência física ou moral.
A obra de José J. Veiga é normalmente associada à literatura fantástica ou ao chamado realismo maravilhoso latino-americano do século XX. Sua estréia ocorreu em 1959, doze anos depois do suposto precursor do fantástico no Brasil, Murilo Rubião, mas ainda antes que o gênero se popularizasse nas letras nacionais, a partir do final da década de 60.
Um breve parênteses: é preciso notar que estão sendo usados os termos “fantástico” e “realismo maravilhoso”, como referentes a recursos e procedimentos literários semelhantes, o que não significa qualificá-los como sinônimos. Manifestações literárias diversas estética e temporalmente, o fantástico (nascido na Europa do século XVIII) e o realismo maravilhoso (também chamado “realismo mágico”, característico da literatura latino americana do século XX) possuem como ponto de aproximação o fato de criarem realidades não miméticas, irreais, sobrenaturais.
Exemplificando com três contos de Cavalinhos de Platiplanto: no conto título, um garoto foge, em sonho, para um universo paralelo onde o desejo de possuir um cavalo, irrealizável neste mundo, torna-se realidade. Aqui, o insólito representa a fuga (onírica) da realidade cotidiana do personagem, criando uma outra cuja extensão é a realidade insólita, e a qual pode sempre recorrer.
Em “A usina de trás do morro”, uma cidadezinha se vê invadida por forasteiros que alteram a rotina de vida da população ao extremo, provocando situações fantásticas. Nesse caso, há a invasão física do insólito sobre a realidade cotidiana das personagens.
Já em “Roupa no coradouro”, não há sonho, nem fantástico: é a morte da mãe que, insólita para a criança, irrompe em seu cotidiano.
Em todos os casos, uma nova realidade (absurda) se forma depois de contrapostos os dois universos (cotidiano e insólito), pelos quais os personagens circulam, seja quando o insólito irrompe no cotidiano ou quando se viaja deste para aquele. A linha que os separa não é claramente demarcável, há uma continuidade entre as duas esferas que só seria notado a uma relativa distância, da qual o leitor-cúmplice não dispõe. Esta situação é metaforicamente explicada pelo narrador de Torvelinho Dia e a obra de J. J. Veiga não deixará de carregar, explicitamente ou não, o sentimento de insatisfação contra quaisquer sistemas de opressão
A narrativa de J. J. Veiga, no referido livro, impressiona exatamente pela sensibilidade com que reflete o território da infância (ainda que com amargor, tristeza e angústia), e por uma profundidade que chega a assustar! Muitas vezes com uma carga de emoção que chega a ferir! Dos doze contos do livro, oito são narrados por crianças! São eles: A Ilha dos Gatos Pintados, A usina atrás do morro, Os cavalinhos de Platiplanto, Os do outro lado, Fronteira, Tia Zi rezando, A Invernada Sossego do e Roupa no coradouro.

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Fonte: Nilto Maciel. Literatura Fantástica no Brasil