30 de outubro de 2011

Comentário do conto de Maria Ondina Braga, A Filha do Diabo.


Publicado na década de oitenta do século anterior, o conto “A Filha do Diabo” é um texto acentuadamente crítico. Fazendo uso do “fantástico” e, em certos aspectos, de elementos do “maravilhoso”, a narradora constrói um painel dos desconcertos dos poderosos, das incongruências e superficialidade da religiosidade católica e da condição feminina na sociedade.
Todavia, apesar das oscilações religiosas da Rainha, a narrativa não presume um enfoque maniqueísta, não levantando, portanto, a questão da luta entre o “Bem” contra o “Mal”, entre Deus e o Diabo. Não há conflito entre essas duas forças. A Rainha simplesmente, por conta da sua desilusão com os santos que ignoraram suas preces e pedidos, por seu livre arbítrio aliou-se ao Diabo, visando à obtenção do que, para ela, constituía um bem supremo, uma defesa aos interesses do trono, ou seja: engravidar, dar um herdeiro para a coroa. Na verdade, para ela, ser mãe não significava a realização de um desejo de mulher, mas sim o cumprimento de uma quase obrigação de sua condição de rainha.
Fica implícito que o Reino (metáfora do Estado e do Poder) tanto poderia escolher Deus como preferir o Diabo, de acordo com os seus interesses políticos. Assim, a defesa dos interesses do Reino, não caberia qualquer tipo de escrúpulo. Os interesses da coroa estavam acima de tudo e de todos. Daí o adultério da Rainha, visando conceber um herdeiro para garantir a continuidade do trono.  Na luta pela preservação deste, vale tudo, não importa que o parceiro seja o Diabo.

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O texto sublinha que não há fé verdadeira nem coerência religiosa (o Mal está dentro da própria Igreja, lado a lado com o Bem, o Diabo tem a sua imagem figurada ao lado dos santos e anjos, nos altares e painéis).
Por outro lado, a narrativa é veiculadora de ideologias feministas, na medida em que valoriza o posicionamento independente da mulher, representado nas atitudes rebeldes e ousadas da Rainha e de sua filha Rhaiva. É ela, a mulher, quem tomas as decisões, quem transgride as normas de conduta, não se submetendo à vontade do homem (marido, pai, pretendentes, rei) e libera-se. É a mulher quem ordena, quem luta pelo poder e o toma nas mãos, é ela quem se revela como ser inteligente, capaz de exercer o comando do reino com mais habilidade que o velho rei.
Rahiva personifica a mulher liberada, a mulher nascida da revolta e da raiva da Rainha.  Ela representa a mulher que assume a sua sexualidade, que se rebela contra a “velha ordem”, contra a tirania do seu pai, a quem ousa desobedecer, recusando-se a seguir à tradição que determina o seu casamento com um homem escolhido pelos pais, para preservar o trono.
A Rainha aparece como uma personagem à procura de um equilíbrio, de um espaço de normalidade no meio social (a Corte). Tal equilíbrio depende de um herdeiro para dar continuidade ao trono e assegurar a preservação do Poder Real. É isto o que se espera dela. Esse é o seu papel, portanto, à Rainha é dada apenas uma opção: gerar um filho, dar um herdeiro para o trono. É esse o seu lugar marcado no esquema da monarquia, é isso que o Rei e o povo esperam dela, é disto que depende a sua inserção no espaço da normalidade, ao qual, devido à sua esterilidade, não pertence. O desejo de ser aprovada e aceita pelo grupo social (a Corte, os súditos) é tão intensa que, num movimento de revolta, desengano e raiva contra os preceitos ditados pelo código religioso, transgride-os, estabelecendo uma aliança com o Diabo, com o qual comete o adultério que a faz mãe.
A Rainha, antes do conluio com o Diabo, é caracterizada pela angústia, pela ansiedade, pela insegurança. Depois de fecundada e mãe, quando passa a pertencer ao espaço da normalidade, caracteriza-se pela altivez, pela segurança que o lugar de mãe da herdeira do trono lhe confere.
 A imagem do homem, representada pelo rei, é fraca e ridicularizada. Este, já velho, mirrado, é, decerto, o responsável pela não fecundação da Rainha. Todavia, em nenhum momento foi levantada a hipótese de atribuir-lhe a responsabilidade pela situação da Rainha, recaindo nela toda a culpa e toda a execração por não dar um herdeiro ao Rei. O homem, durante milênios, era considerado sempre fecundo.
No final, o Arcanjo São Miguel, (anjo de ordem superior, luta com o dragão, símbolo do mal, na tela pintada por Rafael) pune com a morte a Mulher. Aqui é evidente a crítica da narradora à punição que a sociedade impõe à ousadia da mulher e aos seus avanços no caminho da sua libertação da situação de subalternização em que sempre viveu.
Se a sociedade já aceita a mulher moderna e livre, a Igreja ainda a condena e penaliza.
O conto insere-se no gênero “fantástico tradicional”, tal como o explica Tzvetan Todorov. A ambigüidade e a incerteza são mantidas até o final, pois não se sabe quem é a mulher assassinada pelo Arcanjo. Os fatos sobrenaturais não podem ser explicados pelas leis da natureza. Estas leis não explicam a fecundação da rainha pelo Diabo, as misteriosas saídas noturnas de Rahiva, metida em seus sapatos de ferro, o odor fortíssimo de enxofre que acompanha a princesa, os fenômenos ocorridos à meia noite, no baile do palácio e o desaparecimento da Rahiva, sem que ninguém percebesse.
Do ponto de vista crítico, não revelar a identidade da mulher “assassinada” pelo Anjo dentro da Igreja, reforça a idéia de punição à mulher em seu sentido genérico, à mulher que se insurge contra a ideologia da Igreja, que ousa escapar do lugar que está lhe destina desde sempre: o de companheira submissa do marido, mãe devotada, dona de casa.
Ressalta, no parágrafo final, a ação do mal sobre a Igreja, dentro e fora, dando conta de um confronto entre as forças do Bem e as forças do Mal, com a vitória deste último.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha

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