31 de outubro de 2011

Maria Ondina Braga: A Filha do Diabo.


Era uma vez uma rainha que carregava consigo o maior dos opróbrios: ser estéril. Uma rainha piedosa e exausta de tanto ter invocado em vão os favores do Céu: Eis aqui a escrava do Senhor!... Recorrendo, obstinada e fervorosa, aos mediadores divinos: Santa Rita de Cássia, advogada das coisas impossíveis, Santa Margarida de Antioquia, mártir. Uma santa que concebera da Hóstia Consagrada (ou da lua?), os olhos em alvo de mística. A rezar, a penitenciar-se, a jejuar, a oferecer esmolas, a acender velas votivas, a rainha, e o seu ventre seco. Os anos, entretanto, a escoarem-se. O rei idoso e afundado no mar de vícios da governação. E o reinado sem descendência. E a raça no fim. Nossa Senhora do Ó. Novenas, missas cantadas, responsos, oblações. E outra vez Santa Rita de Cássia, Santa Margarida de Antioquia. E um santo lá das Arábias (santo ou mago?) por intermédio de quem a soberana do Sabá alcançara de Salomão: Porque os lábios da mulher alheia destilam mel / e a sua boca é mais suave do que o azeite... Condes, duques, gentis-homens a toda hora a rodeá-la, a cortejá-la.  Mas...  e a honra de sua majestade? E a modéstia cristã?
Assim do inverno à primavera, da primavera ao inverno. As primeiras neves nas fontes. As primeiras rugas na face. Vendo-se certa ocasião na bandeja de prata polida que uma serva lhe chegou com um copo de água, apercebeu-se de um bico sob o queixo. Deixou de dormir. E se passava pelo sono, sonhava com anjos que a embalavam sobre nuvens brancas e frias como lages fúnebres.Anjos de calção, braços nus, penteado à donzela: os mesmos que, na capela-mor, velavam o Santíssimo? E belos e capados como os eunucos do palácio. Acordava gelada, a sondar as pancadas do coração, com medo de já estar morta.

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Ano após ano, assim. Estação atrás de estação. Até que um dia, pela tarde, entrou na igreja, a rainha, e, ao contrário do costume, ia aprumada, arrogante, podia=se compará-la, de perfil, à leoa das armas régias. Confiada de que havia, enfim, de descobrir algum remédio, alguma salvação. O seu orgulho espicaçado pelo escárnio do povo: mulher infecunda como monte maninho! Desatando, pois, a esquadrinhar nichos, relicários, medalhas, guiões, foi do pórtico ao arco-cruzeiro, a rainha, visitou o coro, a sacristia, capela por capela. Por baixo de um altar lateral, o corpo incorrupto do bispo São Clemente: sem nenhuma clemência por ela, por mal de seus pecados, o glorioso bispo. Tão-pouco aquele Cristo que, sendo de cera, escapara milagrosamente a vários incêndios: cera de abelhas criadas no Jardim de Getsemani, segundo a tradição. Nem a medida do pé de Maria Santíssima talhada em papel de obreira, que trouxera consigo no seio durante uma trezena. Nenhuma dessas relíquias. Nem veneras. Nem escapulários. Folheava agora livros sagrados, decifrava pergaminhos. Nada. E foi quando, sem mais nem menos, ao lusco-fusco, deparou com o Diabo. Como nunca havia reparado nele. Santo nome de Jesus? O Diabo ali por todo o lado, a par das imagens bentas, dos seres celestiais: o Diabo-dragão-de-sete-cabeças em combate com o Arcanjo São Miguel, com São Jorge Príncipe da Capadócia, o Diabo do Juízo Final, de forquilha, no altar das almas; a serpente alada do pecado original no vitral do Paraíso Perdido; e uma série de diabinhos pequenos como micos, a tentarem as virgens nos painéis. O Diabo. A importância do Diabo. Quem havia de dizer: o Diabo? Concentrou-se, por instantes, a rainha: e porque não o Diabo? Um minuto de hesitação. Depois, a nuca atirada para as costas, pálpebras descidas, ofegante, o eco da sua voz pela nave: Oh, tu, Anjo das Trevas, concede-me a graça que Deus me negou! Fremente a sua prece: Oh Tenebroso!... Noite escura. Duas brasas, os olhos do Diabo, as fauces arreganhadas de lobo, a língua farpada, as patas de javali. Oh, tu, Maldito!...
Recolheu-se ao palácio, a rainha, tomada de enlevo tanto como de frenesi. Calor, muito calor, se bem que meados de Setembro. O aroma das uvas maduras. O estalar da palha triga sob o vento suão. Andava el-rei a montar: estropeada de cavalos, ganir de cães, gritos de falcões. Vestiu-se de vermelho, a rainha, como na noite de núpcias, deitou-se no vasto leito, caiu em sono profundo, sonhou um sonho estranho. Um sonho onde seu senhor lhe cingia a fronte no meio de uma grande festa: a da coroação? Só que, desajustada, a coroa escorregava-lhe pelas espáduas, descia-lhe à cintura, algemava-a nas ancas. Ela a estrebuchar naquelas cadeias. Nisto, o mundo a abalar nos eixos, um terramoto, um vulcão debaixo dos pés. El-rei, que subitamente se erguera no ar, a diminuir, a apagar-se, tal uma estrela cadente. Sozinha, a rainha? Não, sozinha não, porque a festa continuava, mau grado o cataclismo. E se liberta. A coroa espedaçada. Liberta, mas também cheia de confusão. Acordou alagada em suor. Pecara. Cometera um pecado mortal. Que o fim da mulher adúltera é mais amargo que o absinto / e agudo como a espada de dois gumes... Levantou-se, tremente, mirou-se no espelho do toucador, achou-se mais nova e mais bonita. Adultério? Qual adultério! Sacudia os cabelos ao jeito de querer afastar os últimos escrúpulos. Aliás, quem é que podia dizer: estou puro, estou limpo? Amanhecia. A exaltação da véspera tornou a assaltá-la. Tinha os peitos erectos, e a noz chocha da madre reverdecia-lhe. Nesse mesmo dia, o rei, que Caçara um precioso espécimen de veado-de-espelho, presenteou-a coma armação.
Decorreu um mês. Sua majestade regressou da montaria. A rainha mandou frisar a trança, mandou esmaltar a cara, mandou servir um banquete. Éditos correram cidades e aldeias: ia nascer o herdeiro do trono.
A criança que nasceu foi uma menina, uma menina forte, vivace, pele de oiro negro, cabelo cor da chama dos archotes, olhos de cisterna e de relâmpago. Uma exótica, arrepiante formosura. Como se lhe ia chamar? A rainha é que escolheu o nome: Rahiva. Porque procedia de uma teimosa, dilatada raiva de esperar. Porque havia de trazer consigo todo o assanho, toda a paixão de vingar, de ser, de vencer. Rahiva, nome que queria dizer furibunda fome de amor, e também protesto e prodígio.
Rahiva que, consoante os cálculos reais, nascera adiantada, cresceu maravilhosamente, como a relva ao sol húmido dos trópicos. Com dez anos tinha já aprendido as intrincadas lições de reinar. Cultivava tão bem ou melhor que o pai as flores malignas da ambição e da tirania. E gozava do dom de estar em diversos lugares a um tempo. E intrigava, adulava, traía.
O velho monarca, cada vez mais mirrado e mesquinho, todo se revia agora na princesa Rahiva, e para ela alimentava grandiosos projectos. Verdade que, de longe em longe, um espinho lhe picava a consciência espessa e frágil de papel-de-mataborrão: nessas alturas achava-se a perguntar a si próprio se seria realmente o progenitor de Rahiva. A princesa gerara-se no princípio do outono, quando ele dormia as noites abrigado num toldo de peles ao fundo da coutada, e só sabia da seta e do sangue, como na guerra. Porém, a beleza, a esperteza, a precocidade de Rahiva acabavam por lhe amodorrar tais idéias. Era de certeza sua filha, herdara-lhe os méritos, as maneiras, as manhas. E começou a tratar de lhe arranjar um noivo condigno.
No dia em que o rei participou à filha as negociações em curso, esta, recolhendo-se mais cedo que o habitual, encomendou para a noite um par de sapatos de ferro. Sapatos de ferro? Para quê sapatos de ferro? Ninguém compreendia, mas também ninguém a demovia. Apressou-se o ferrador a confeccionar os chapins na forja faiscante, pondo neles todo o esmero que punha as ferraduras do alazão real. Rahiva retirou-se para os seus aposentos, despediu as camareiras, tirou as roupas, calçou os pesados sapatos, e desapareceu. E sempre assim daí em diante. De dia, a princesa aplicava-se aos afazeres da corte, conferenciava com os políticos, despachava gostosamente, em nome do pai, ordens de prisão e sentenças de morte, cavalgava, enfeitava-se, resplandecia. Pela calada da noite, todavia, desnudando-se, aí enfiava ela os sapatos de ferro e sumia – pela janela? Pela fechadura da porta? Todas as noites um par a estrear. O ferrador, curvado sobre a ferraria e a fornalha. O rei intrigado e tenso. As damas-de-honor queixando-se de um fedor a enxofre queimado. Já antemanhã, sua alteza a dormir a sono solto, como uma criança, e, à entrada da antecâmara, dois pedaços de ferro ardido e gasto.
Entrementes Rahiva mandara forrar as peredes do quarto-de-cama a cetim cor de lume, e a sua beleza de oiro negro encandecia. Os príncipes pretendentes rejeitava-os ela um por um. Corriam na corte extravagantes boatos e histórias as mais fantamasgóricas. No entanto, só a rainha, a rainha, só, sabendo, arrepiada, que Rahiva se precipitava todas as noites no Inferno para bailar, orgiar com os demônios. A prova: os chapins de ferro requeimados e rotos, o cheiro sulfuroso e sufocante.
Extraviado o sono. El-rei entra a arrastar-se a desoras pelas galerias do paço, o corpo dobrado em dois, e suspiros, e constante cismar. Que fadário o da princesa? Que segredo? Que praga? Convoca os conselheiros, o confessor. Conspiram: um baile alongado até a madrugada, os portões trancados, Rahiva a dançar com o filho do corregedor-mor. Impossível interromper o passo de dança, abandonar tão nobre parceiro, despir-se, trocar o elegante calçado de camurça pelo grosseiro de ferro. E caso abalasse mesmo, todo um esquadrão atrás dela. Os seus cavaleiros voavam à velocidade dos ciclones.
Dito e feito. No Sarau, Rahiva dança com os jovens representantes da flor da nobreza, escuta, complacente, as rimas dos bardos e as canções dos menestréis, sorri, conversa, exibe-se. Até que o galante filho do corregedor lhe vem solicitar um minuete. Falta um quarto para a meia-noite. No seu áureo assento, cofiando a barba grisalha, o rei não a larga de vista. Soam as doze badaladas. Pelo rosto da princesa perpassa uma nuvem que logo se adensa, tal um céu de borrasca. Sucede então ali um fenômeno tão subtil e tão terrível que, mais tarde, ninguém ousará recordá-lo, e, se alguém o recorda, persigna-se. Um rodopio. Nas paredes espelhadas, as figuras, invertidas, causam a impressão de enforcados nos lustres e nos cruzamentos das ogivas. Pares desemparelhando-se. Alarido. As luzes sopradas por uma lufada. Coisa de minutos, quanto muito. E, nesta barafunda, onde está a princesa? Onde está a princesa. brada o rei. Nenhuma pessoa o atende. Os fidalgos a discutir pela trova das noivas. Senhoras a desacordar. No cercado, uns contra os outros, os cavaleiros como se acometidos de loucura, armas quebradas, o relinchar funesto dos corcéis.
Sucumbe o soberano. Nigromantes, mágicos, astrólogos, desentendidos na consulta dos catarpácios e dos astros. O filho do corregedor jurando que Rahiva se encontra dentro do salão, tomando os seus vestidos por ela. Sequer os guardas de atalaia tendo dado por que a princesa saísse.
Por último, já deitados lado a lado, o rei pergunta à rainha, gaguejante de ressentimento e mal contida fúria, como engendrou ela semelhante filha. Dele, não, ausente à data. Acerta a voz. Esforça-se por se dominar. De início duvidara do seu mais trigueiro e esbelto donzel que condenara ao cadafalso por lhe ter posto a coroa à banda na cerimônia do beija-mão.
A rainha, muda, amordaçada de pavor no lençol de cambraia. O rei emudece também, o olhar fito no dossel. Está visto que os seus pensamentos seguem agora um rumo diferente. Se a princesa Rahiva se comporta de modo tão diverso do das demais criaturas, não terá a criança vindo lá do Alto? Muito religiosa, a rainha, sempre na igreja. Amores com os santos? Com os anjos? Os querubins que sustêm as luzes do sacrário? O donairoso e valente Arcanjo São Miguel?
Mais calmo, sua majestade recupera a palavra. Não é ele senhor e dono da esposa? Não tem o direito de saber tudo? E descanse a rainha que não lhe pedirá contas. Princesa tão formoas e prendada, rara, decerto, no mundo. Orgulha-se de Rahiva. A menina, porém, atingida a puberdade, exige um par de sapatos de ferro todas as noites e desarvora do palácio ninguém advinha para que sítio. Que quer aquilo dizer? Que mistério há ali? “Vamos, responda, dê uma explicação!” Fala aos sacões, quase aos berros, sentado na cama, esguedelhado, a tiritar, decrépito.
Bem... fora um anjo, sim, mas não os querubins nem São Miguel, responde a rainha. Assexuados, ambos: calções de mancebo, cabeleira e ombros de dama.
Que anjo, então?
Um negro, peludo de carvões nos olhos.
Com asas?
Sim, com asas. Asas agudas, membranosas, roxas de morcego.
O rei vai escorregando sobre as almofadas, como se prestes a desfalecer.
Esse anjo... esse anjo... encontra-se na igreja?
Sim, na igreja, nos retábulos, nas pinturas murais. Nunca antes se firmara nele. O único, contudo, que acedera ao seu rogo de fecundidade. De pálpebras cerradas, a rainha, tal se estivesse a ser beijada, a ser amada. O frenesi e o enleio a retomá-la. Fragantes e mornas as uvas na ramada do pátio. Latido de cães. Nesse dia, vossa majestade presenteou-me com a armação de um veado-de-espelho. Fala lenta, voluptuosamente. O anjo negro também tinha armação. “Aos santos, aos anjos, implorei e de rojo, com humildade e respeito; a este ordenei-lhe, altiva, confiante. E devo dizer-lhe, meu senhor, que jamais me senti tão confortada”.
O rei a resfolegar como se um enorme peso o esmagasse: É filha do Diabo! É filha do Diabo!
Um vendaval varre o palácio de lês a lês. Ecoam os sapatos de ferro nas lajes do chão, e estremece o leito real com as palpitações do sangue do rei mirrado e mesquinho: “É filha do Diabo! É filha do Diabo!” O Diabo refastelado no sólio de oiro, bebendo pela taça de diamante, desvendando sigilos de Estado, maquinando, minando, fornicando. O Diabo a abraçar a rainha pelos rins, a enaltecê-la, a levá-la em triunfo pelos caminhos da terra. O povo em fileiras apertadas a aclamar o Diabo. O Diabo monstruoso a pejar a rainha. Ela estorcendo-se no furor, na febre de parir o Diabo. O Diabo a resplandecer como uma constelação no falso firmamento da corte. Ele próprio a idolatrar o Diabo!... Legítimo e nefando sucessor do poder, o Diabo a lançar-se-lhe ao gasnete. A sua alma a debater-se, perdida, nas garras do Diabo.
Um alvoroço pela cidade. Conta-se que, à hora a que o monarca rendia o espírito, ouvia-se um estouro e via-se sair fumo dos aposentos da princesa Rahiva, enquanto a rainha disparava para a igreja.
No adro da igreja, cobras, macacos, bichos imundos a rabiar. Lá dentro, painéis rasgados, vitrais estilhaçados, e, coisa mais espantosa ainda: o Arcanjo São Gabriel a trespassar com a lança um colo de mulher.
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Conto inserido na antologia O Fantástico no Feminino, Moraes, 1985.
Imagem na postagem: Foto de Maria Ondina Braga.




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