Pintava a lindas cores como um velho artista do passado, que se chamava Douanier Rousseau; simplesmente, os seus bichos não eram ingênuos nem agressivos, mas perigosos. Não terríveis, não assustadores: perigosos, embora um pouco engraçados também. Espreitavam ou estavam alerta ou resfolegavam ao de leve (era como se resfolegassem) ao preparar o salto. Havia sempre folhagem a dissimulá-los, a mantê-los numa quase ilegalidade graciosa, bonitas flores bojudas, de carne rosada, a tornar por assim dizer impossível, a ridicularizar, a sua ferocidade.
Não se via o tigre a atacar o búfalo, mordendo-o já, começando a dilacerá-lo. Não. O tigre, quando tigre havia, estava meio escondido por uma das tais flores, maior do que a sua cabeça. E sentia-se que ele já avistara a presa, que a espiava, que só estava à espera da altura mais conveniente, para agir. Era um jovem leão ágil, esse a que o pintor dava os últimos retoques. Um jovem leão já sabedor, a olhar bem de frente para quem o olhava. Tinha uma grande juba redonda e escura de que só se via metade, e um corpo amarelado que à primeira vista parecia exíguo. Exíguo porque atrás de si havia um tronco de árvore em cuja largura caberiam sete leões e que servia de pano de fundo a uma amálgama de lianas, de longas folhas gordas, carnosas, de arbustos que se erguiam do chão ou que tombavam de cima, em cascata. A juba estava semi-escondida por uma dessas folhas, grande e lobada, quase vermelha, quase animal.
«Era assim a floresta?» perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber? Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos. Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, o mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro pequenos jardins de aclimatação.
Aquelas estranhas florestas eram, no entanto, as que ele imaginava. Velhas, luxuriantes florestas de há séculos, com uma vida que vinha do princípio das coisas. Florestas com túrgidas flores que nasciam, cresciam e morriam em poucas horas, que, por assim dizer, renasciam e onde o perigo espreitava por detrás de cada folha.
Os seus quadros eram muito procurados porque eram decorativos, tinham belas cores e nunca acabavam de ser vistos. Ali, estava o leão, mas, olhando melhor, procurando, avistavam-se as três corças, todas encolhidas, como que receosas, a cobra a rastejar, e mais além, confundindo-se com as lianas, a aranha carangueja. Havia também ângulos dos quais se podiam ver animaizinhos escondidos, aqui e além. Um, dois, cinco, mais?
Era um herdeiro de Rousseau e um charadista. Mas as charadas tinham desaparecido com os almanaques. Um pintor portanto original, criador, muito apreciado. «Tenha a floresta em casa» era o seu slogan publicitário. E as pessoas gostavam de ter em casa um pedaço dessa floresta, era refrescante. A maioria delas nunca tinha visto um leão nem um tigre a não ser nos livros de zoologia, porque os jardins onde havia animais eram poucos e os próprios animais tendiam a desaparecer, como se o mundo actual já não lhes pertencesse. As fêmeas procriavam com dificuldade, algumas espécies estavam praticamente extintas, outras tinham mesmo desaparecido por completo. Assim, já não havia elefantes, nem ursos nem leopardos.
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O casal que comprou ao pintor a sua última grande tela, a do leão, tinha dois filhos pequenos, um de cinco, outro de sete anos, e as crianças andaram semanas de volta do quadro, até que lhe descobriram todos os segredos, os bichos semi-escondidos, espreitadores, prestes a devorar ou prestes a ser devorados. Era um jogo apaixonante.
«Ainda há mais», dizia um.
«Aposto que não», respondia o outro.
E em primeiro plano, fitando-os com serenidade um pouco trocista, o leão da juba redonda, grandes, plácidos olhos amarelos, corpo inquieto. As crianças ouviram dizer que no jornal viera a notícia da morte, no jardim de Choa, junto ao Nilo Azul, do último leão do mundo. E isso pareceu-lhes apaixonante, era como se estivessem, também eles, à beira de um precipício e lá em baixo fosse a outra era, aquela em que não haveria leões.
«Nós temos leão», disse o mais pequeno quando estavam deitados e de luz apagada.
«É de pano pintado.»
«O resto é de pano pintado. Ele não.»
«És parvo.»
«Os olhos dele são olhos a sério. É um leão. E deve ter fome," Sentou-se na cama. «O que comerá um leão?»
«Não é fácil alimentar um leão», disse o mais velho com paciência. «Não é nada fácil".
«Não deve ser. O que comem os leões?»
«Não sei. Talvez outros animais, os mais saborosos. Gente, quando têm muita fome. Agora vou dormir, tenho sono.» No dia seguinte continuaram a sua ronda entusiástica em volta do quadro. E o mais velho estacou de repente:
«Gilles!» chamou em voz baixa; «Quantas são as corças?» «Três», respondeu Gilles sem hesitar.
«Também me parecia», declarou com fingido à-vontade. «Também me parecia que elas eram três.
Mas hoje, agora são duas!»
«Não pode ser!»
Podia. O coração de Gilles batia com intensidade. «Vamos dizer à mãe? Vamos já dizer à mãe?»
«Não», disse o mais velho. «Não. É um segredo. Jura que não contas a ninguém. É um segredo, ouviste? Como... descobrir um tesouro. Anda, jura.»
«É um segredo. Juro que não conto a ninguém».
«Pronto».
Gilles levou o dia a passear diante do quadro, e o velho leão a fitá-lo com os seus tranquilos olhos amarelos. Alex, o irmão mais velho, parecia haver-se desinteressado e olhava os carros que passavam pela estrada, a poucos metros. Olhava-os como quem sonha. Como quem pensa. Como quem procura?
No dia seguinte só havia uma corça e no outro algumas folhas haviam preenchido o lugar, lá longe, onde elas tinham estado, quase escondidas, mas não totalmente, pelo enorme tronco da árvore. Durante dois dias não houve modificação; o jovem rei digeria. Mas depois desapareceu um pequeno macaco risonho. Restavam a cobra e a aranha. O leão parecia não se decidir.
«Olha para ele, Alex».
«O que tem?»
«Os olhos dele. Não sei. Tenho medo».
«Medo de quê? És parvo. És um miúdo, é o que tu és. Medo de quê?»
De quê? Não sabia. Mas medo. Queria ir deitar-se, não olhar mais para os olhos amarelos, tão brilhantes, não sentir mais o peso daquele segredo.
Na manhã seguinte a mãe sacudiu-o com força: «O Alex? Onde está o Alex?» Sabia lá! Mas levantou-se porque todos procuravam, faziam muito barulho, a mãe chorava, o pai dava gritos, ameaçava toda a gente, nunca o tinha visto assim, parecia doido. E ele soube então - e viu - que a roupa da cama do irmão estava dilacerada, como se a tivessem cortado à navalha, e que havia sangue pelo chão. A polícia dentro de casa. Dois vagabundos presos e nesse mesmo dia confessavam o crime, ou melhor, não tinham reagido bem ao detector de mentiras. Culpados. Condenados decerto a prisão perpétua.
«Jura que não contas a ninguém, É um segredo, ouviste? Como descobrir um tesouro. Anda, jura.» «É um segredo. Juro que não conto a ninguém».
Uma noite, a mãe. E então o pai preso, os vagabundos libertos. O detector funcionara mal, todas as máquinas podem avariar-se, não é assim? Era estranho, mas Gilles ficou contente por o pai ter sido preso. E por os tios terem chegado, todos de luto, a fim de tomarem conta dele, pobre menino de cinco anos só no mundo. Fecharam portas e janelas, e levaram a chave e Gilles também, para uma cidade distante onde tinham uma casa modesta, sem quadros. Quiseram que o menino esquecesse o passado; ele, porém, recusou-se a isso. Terminantemente. Era, de resto, uma recordação tão estranha que, com o decorrer dos anos e as palavras da tia, acabou por a julgar um sonho mau mas apaixonante.
Muito tempo depois, já homem, já casado, voltou ali. Meteu a velha chave na fechadura, abriu a porta que o tempo emperrara. Um cheiro estranho a bafio. Seria mesmo a bafio? Entrou devagar, foi entrando, e a primeira porta que abriu foi a da sala e a primeira coisa que olhou foi a tela. Lá estava o leão com o seu ar caricatural e perigoso, e as corças e o macaco, e Gilles teve então de acreditar na tia que durante anos e anos lhe dissera que ele fora uma criança demasiado imaginativa. O pai tinha simplesmente enlouquecido e morto primeiro Alex, depois a mãe. Os corpos, assegurava ela, tinham sido encontrados mais tarde num barranco. Agora Gilles, ali em frente da tela, já não tinha razão para duvidar da tia nem dos médicos que haviam internado seu pai no manicómio. Mas sentia-se profundamente decepcionado e arrependido de ter vindo.
Autora: Maria Judite de Carvalho. Os Idólatras. Lisboa: Seara Nova, 1975.
Imagem: Foto de Maria Judite de Carvalho. (Arquivo Google).
Não se via o tigre a atacar o búfalo, mordendo-o já, começando a dilacerá-lo. Não. O tigre, quando tigre havia, estava meio escondido por uma das tais flores, maior do que a sua cabeça. E sentia-se que ele já avistara a presa, que a espiava, que só estava à espera da altura mais conveniente, para agir. Era um jovem leão ágil, esse a que o pintor dava os últimos retoques. Um jovem leão já sabedor, a olhar bem de frente para quem o olhava. Tinha uma grande juba redonda e escura de que só se via metade, e um corpo amarelado que à primeira vista parecia exíguo. Exíguo porque atrás de si havia um tronco de árvore em cuja largura caberiam sete leões e que servia de pano de fundo a uma amálgama de lianas, de longas folhas gordas, carnosas, de arbustos que se erguiam do chão ou que tombavam de cima, em cascata. A juba estava semi-escondida por uma dessas folhas, grande e lobada, quase vermelha, quase animal.
«Era assim a floresta?» perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber? Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos. Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, o mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro pequenos jardins de aclimatação.
Aquelas estranhas florestas eram, no entanto, as que ele imaginava. Velhas, luxuriantes florestas de há séculos, com uma vida que vinha do princípio das coisas. Florestas com túrgidas flores que nasciam, cresciam e morriam em poucas horas, que, por assim dizer, renasciam e onde o perigo espreitava por detrás de cada folha.
Os seus quadros eram muito procurados porque eram decorativos, tinham belas cores e nunca acabavam de ser vistos. Ali, estava o leão, mas, olhando melhor, procurando, avistavam-se as três corças, todas encolhidas, como que receosas, a cobra a rastejar, e mais além, confundindo-se com as lianas, a aranha carangueja. Havia também ângulos dos quais se podiam ver animaizinhos escondidos, aqui e além. Um, dois, cinco, mais?
Era um herdeiro de Rousseau e um charadista. Mas as charadas tinham desaparecido com os almanaques. Um pintor portanto original, criador, muito apreciado. «Tenha a floresta em casa» era o seu slogan publicitário. E as pessoas gostavam de ter em casa um pedaço dessa floresta, era refrescante. A maioria delas nunca tinha visto um leão nem um tigre a não ser nos livros de zoologia, porque os jardins onde havia animais eram poucos e os próprios animais tendiam a desaparecer, como se o mundo actual já não lhes pertencesse. As fêmeas procriavam com dificuldade, algumas espécies estavam praticamente extintas, outras tinham mesmo desaparecido por completo. Assim, já não havia elefantes, nem ursos nem leopardos.
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O casal que comprou ao pintor a sua última grande tela, a do leão, tinha dois filhos pequenos, um de cinco, outro de sete anos, e as crianças andaram semanas de volta do quadro, até que lhe descobriram todos os segredos, os bichos semi-escondidos, espreitadores, prestes a devorar ou prestes a ser devorados. Era um jogo apaixonante.
«Ainda há mais», dizia um.
«Aposto que não», respondia o outro.
E em primeiro plano, fitando-os com serenidade um pouco trocista, o leão da juba redonda, grandes, plácidos olhos amarelos, corpo inquieto. As crianças ouviram dizer que no jornal viera a notícia da morte, no jardim de Choa, junto ao Nilo Azul, do último leão do mundo. E isso pareceu-lhes apaixonante, era como se estivessem, também eles, à beira de um precipício e lá em baixo fosse a outra era, aquela em que não haveria leões.
«Nós temos leão», disse o mais pequeno quando estavam deitados e de luz apagada.
«É de pano pintado.»
«O resto é de pano pintado. Ele não.»
«És parvo.»
«Os olhos dele são olhos a sério. É um leão. E deve ter fome," Sentou-se na cama. «O que comerá um leão?»
«Não é fácil alimentar um leão», disse o mais velho com paciência. «Não é nada fácil".
«Não deve ser. O que comem os leões?»
«Não sei. Talvez outros animais, os mais saborosos. Gente, quando têm muita fome. Agora vou dormir, tenho sono.» No dia seguinte continuaram a sua ronda entusiástica em volta do quadro. E o mais velho estacou de repente:
«Gilles!» chamou em voz baixa; «Quantas são as corças?» «Três», respondeu Gilles sem hesitar.
«Também me parecia», declarou com fingido à-vontade. «Também me parecia que elas eram três.
Mas hoje, agora são duas!»
«Não pode ser!»
Podia. O coração de Gilles batia com intensidade. «Vamos dizer à mãe? Vamos já dizer à mãe?»
«Não», disse o mais velho. «Não. É um segredo. Jura que não contas a ninguém. É um segredo, ouviste? Como... descobrir um tesouro. Anda, jura.»
«É um segredo. Juro que não conto a ninguém».
«Pronto».
Gilles levou o dia a passear diante do quadro, e o velho leão a fitá-lo com os seus tranquilos olhos amarelos. Alex, o irmão mais velho, parecia haver-se desinteressado e olhava os carros que passavam pela estrada, a poucos metros. Olhava-os como quem sonha. Como quem pensa. Como quem procura?
No dia seguinte só havia uma corça e no outro algumas folhas haviam preenchido o lugar, lá longe, onde elas tinham estado, quase escondidas, mas não totalmente, pelo enorme tronco da árvore. Durante dois dias não houve modificação; o jovem rei digeria. Mas depois desapareceu um pequeno macaco risonho. Restavam a cobra e a aranha. O leão parecia não se decidir.
«Olha para ele, Alex».
«O que tem?»
«Os olhos dele. Não sei. Tenho medo».
«Medo de quê? És parvo. És um miúdo, é o que tu és. Medo de quê?»
De quê? Não sabia. Mas medo. Queria ir deitar-se, não olhar mais para os olhos amarelos, tão brilhantes, não sentir mais o peso daquele segredo.
Na manhã seguinte a mãe sacudiu-o com força: «O Alex? Onde está o Alex?» Sabia lá! Mas levantou-se porque todos procuravam, faziam muito barulho, a mãe chorava, o pai dava gritos, ameaçava toda a gente, nunca o tinha visto assim, parecia doido. E ele soube então - e viu - que a roupa da cama do irmão estava dilacerada, como se a tivessem cortado à navalha, e que havia sangue pelo chão. A polícia dentro de casa. Dois vagabundos presos e nesse mesmo dia confessavam o crime, ou melhor, não tinham reagido bem ao detector de mentiras. Culpados. Condenados decerto a prisão perpétua.
«Jura que não contas a ninguém, É um segredo, ouviste? Como descobrir um tesouro. Anda, jura.» «É um segredo. Juro que não conto a ninguém».
Uma noite, a mãe. E então o pai preso, os vagabundos libertos. O detector funcionara mal, todas as máquinas podem avariar-se, não é assim? Era estranho, mas Gilles ficou contente por o pai ter sido preso. E por os tios terem chegado, todos de luto, a fim de tomarem conta dele, pobre menino de cinco anos só no mundo. Fecharam portas e janelas, e levaram a chave e Gilles também, para uma cidade distante onde tinham uma casa modesta, sem quadros. Quiseram que o menino esquecesse o passado; ele, porém, recusou-se a isso. Terminantemente. Era, de resto, uma recordação tão estranha que, com o decorrer dos anos e as palavras da tia, acabou por a julgar um sonho mau mas apaixonante.
Muito tempo depois, já homem, já casado, voltou ali. Meteu a velha chave na fechadura, abriu a porta que o tempo emperrara. Um cheiro estranho a bafio. Seria mesmo a bafio? Entrou devagar, foi entrando, e a primeira porta que abriu foi a da sala e a primeira coisa que olhou foi a tela. Lá estava o leão com o seu ar caricatural e perigoso, e as corças e o macaco, e Gilles teve então de acreditar na tia que durante anos e anos lhe dissera que ele fora uma criança demasiado imaginativa. O pai tinha simplesmente enlouquecido e morto primeiro Alex, depois a mãe. Os corpos, assegurava ela, tinham sido encontrados mais tarde num barranco. Agora Gilles, ali em frente da tela, já não tinha razão para duvidar da tia nem dos médicos que haviam internado seu pai no manicómio. Mas sentia-se profundamente decepcionado e arrependido de ter vindo.
Autora: Maria Judite de Carvalho. Os Idólatras. Lisboa: Seara Nova, 1975.
Imagem: Foto de Maria Judite de Carvalho. (Arquivo Google).
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