22 de novembro de 2011

Murilo Rubião: Botão-de-Rosa.

“Aroma de mirra, de aloés e cássia exala de tuas vestes, desde as casas de marfim.”
Salmos, VLIV, 9.

Quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de Rosa sentiu que era um homem liquidado. Entretanto não se preocupou, aborto em pentear os longos cabelos. Concluído o penteado, passou a alisar a barba com uma escova especial umedecida em perfume. Nesse instante ouviu gritos vindos da rua. Não distinguia bem o que gritavam, mas de uma coisa estava certo: vinham pegá-lo. – Deu de ombros e buscou uma fita colorida para prender a cabeleira.
Antes de despir a camisola de seda, escolheu para o dia o seu melhor traje: uma túnica branca, bordada a ouro dos companheiros do conjunto de guitarras – Molinete, Zelote, Judô, Pedro Taguatinga, Simonete, Bacamarte, André-Tripa-Miúda, Íon, Mataqueus, Pisca, Filipeto e Bartô – com os quais acertara novo encontro no Festival. Até lá Taquira teria o filho. (Fora obrigado a separar-se da companheira porque os pais recusaram a recebê-lo em casa, alegando que não eram casados. Teve, à época, vaga premonição de que jamais se reencontrariam.)
Separou as meias, o cinturão de fivela dourada e procurou uma sandália que combinasse com o vestuário. Sua escolha recaiu numa de solas grossas, apropriadas ao péssimo calçamento da cidade.
O clamor crescia lá fora, aumentava-lhe a impaciência: não podiam esperar que acabasse de se aprontar? Ou temiam pela fuga? Malta de ignorantes, como poderia fugir? Antes que apelassem para a força, procurou acalmá-los, mostrando-se na varanda. A turba emudeceu à sua presença. Fez-se um silêncio hostil, os olhos enfurecidos cravados na sua figura tranqüila. Um moleque atirou-lhe uma pedra certeira na testa e a multidão de novo se assanhou: Cabeludo! Estuprador! Piolhento!
Quando compreenderiam? – Retrocedeu até a sala. Não por covardia, apenas para estancar o sangue que começava a descer pela face e certamente lhe mancharia a roupa. Medicava-se ainda e ouviu baterem na porta. Era o sargento, comandante do destacamento, acompanhado de seis soldados e um mandado de prisão. Nem leu o papel. Alçando a mão, num apelo mudo, para que o esperassem, voltou ao quarto. Após jogar suas coisas na maleta, colocar nos dedos os anéis e no pescoço os colares, seguiu os policiais.
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Comentário do conto "Botão - de - Rosa".


No conto Botão-de-Rosa, Murilo Rubião aborda o tema da Justiça. O personagem central, que tem o mesmo nome do conto, é preso sob a insólita acusação de ter seduzido, estuprado e engravidado todas as mulheres da cidade, ao mesmo tempo. Como escreve Audemaro Taranto Goulart, o Juiz que condena Botão-de-Rosa é uma perfeita metáfora do autoritarismo do indivíduo que estando investido de poder, aproveita-se de sua situação de superioridade para manipular a justiça. Tal figura exemplifica bem a autoridade que exorbita, tão comum no cotidiano de todos. Fica claro que ela não representa a razão, mas, ao contrário, é um exemplo perfeito da desrazão. (In: O Mundo Fantástico de Murilo Rubião. Ed. Lê. Belo Horizonte, 1995).
A narrativa, ao revelar que “quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de-Rosa sentiu que era um homem liquidado”, revela também ter havido uma transgressão em termos daquilo que a norma social estipulado: ter engravidado todas as mulheres de uma cidade.
O efeito insólito provoca no leitor a sensação de estranhamento, detém sua atenção e o força a uma leitura ideológica. Aliás, em “O Convidado”- conto de Rubião – a atmosfera geral fica muito mais densa, mais viscosa, se comparada com as narrativas anteriores do autor. A sensação sinistra consegue atingir efeitos sociais bem mais corrosivos. O elemento confirmador dessa possibilidade crítica é o julgamento de Botão-de-Rosa. As argumentações para provar ou não sua inocência perdem totalmente o sentido tradicional; não pela inverossimilhança que elas propõem (Ex. ”As penas variavam entre dez anos de reclusão, prisão perpétua ou morte. José Inácio ficou boquiaberto. Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás! Ou teria estudado em outros livros?”), mas pela aguda crítica que o texto propõe. Uma leitura linear de um processo judicial semelhante (que conduziria ao inevitável questionamento: inocente ou culpado?) fica totalmente diluída e abafada pela leitura subjacente. O que interessa é o modo pelo qual o julgamento se articula, desencadeando a percepção de uma denúncia implícita ao texto. Ex.: “Se [o juiz] decidiu que esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as provas necessárias à sua condenação”.
A rejeição de Botão-de-Rosa por parte do povo provoca nos leitores uma crítica aguda à atitude responsável por esta rejeição. “Antes da vinda desse marginal nosso povo tinha hábitos saudáveis, desconhecia os vícios das grandes metrópoles.” A inversão é latente. Quem acaba sendo marginalizado pela crítica é o “povo” e não o “marginal”.
O código religioso, que permeia toda a obra de Murilo Rubião através das epígrafes bíblicas, como unidades redutoras dos contos, ressurge com toda sua força em Botão-de-Rosa. A associação com a figura de Cristo é imediata e inevitável. Seja através de suas ações como dos seus atributos. (As roupas são os primeiros indícios caracterizadores: “longos cabelos”, “túnica branca”, “sandália”, etc.) Os seus “companheiros do conjunto de guitarras” são exatamente doze, simbolizando os apóstolos. Mais ainda, Botão-de-Rosa é traído por um deles (restaurando-se assim a tradição da figura de Judas), e o seu comportamento obedece ao mais elevado dos estoicismos (“um pobre diabo que de negava a defender-se e nem se importava com sua própria condenação”), enquanto sua morte catalisa os pecados do homem (no caso, ironicamente descritos na gravidez das mulheres), e sua pureza, referencializada através do próprio nome, se manifesta simbolicamente no despojamento total revelado pelo momento de sua morte: “desnudo, ofereceu o pescoço ao carrasco”.
Deste modo, vemos como o fantamasgórico e o inverossímil encobrem subtextos que elucidam possibilidades de leitura. E não seria ousado afirmar que o texto “fantástico”, em Murilo Rubião, mascara a mais realista das literaturas.
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Autoria do comentário: Jorge Schwartz. In: Do fantástico como máscara, p. 13 e 14


7 de novembro de 2011

O Galo Impertinente. Conto de J. J. Veiga

Todo mundo sabia que se andava construindo uma estrada naquela região, pessoas que se aventuravam por lá viam trabalhadores empurrando carrinhos, manobrando máquinas ou sentados à sombra, cochilando com o chapéu no joelho ou comendo de umas latas que a empresa fornecia; diziam que eram rações feitas em laboratórios, calculadas para dar o máximo de rendimento com o mínimo de enchimento. Quem viajava de automóvel conseguia interromper a atividade dos engenheiros, eles vinham solícitos com o capacete na mão dar explicações, mostrar o projeto no papel, esclarecer o significado de certos sinais que só eles entendiam. Mas a obra estava demorando tanto que nos habituamos a não esperar o fim dela; se um dia a boca da estrada amanhecesse com uma tabuleta novinha convidando o povo a passar, acho que ninguém acreditaria, imaginando tratar-se de brincadeira.
Com o passar do tempo os engenheiros foram ficando nervosos e mal- humorados, dizia-se que eles desmanchavam e refaziam trechos enormes da estrada por não considerá-los à altura de sua reputação. Não estavam ali construindo uma simples estrada; estavam mostrando a que ponto havia chegado a técnica rodoviária. Houve protestos, denúncias, pedidos de informação, mas como as autoridades não sabiam mais de que estrada se tratava, nenhuma resposta era dada; e mesmo que respondessem seria em linguagem tão técnica que ninguém entenderia, nem os mais afamados professores, todos por essa altura já desatualizados com a linguagem nova.
Quem tinha de atravessar a região ia abrindo picadas pelo mato, passando rios com água pelo peito, subindo e descendo morros cobertos de malícia e unha-de-gato. Quando se perguntava a um engenheiro mais acessível quando era que a estrada ia ficar pronta, ele fechava a cara e dizia secamente que a estrada ficaria pronta quando ficasse.
Um dia — as preocupações eram outras, ninguém pensava mais no assunto — anunciaram que a estrada afinal estava pronta e ia ser inaugurada. Depois de uma inspeção preliminar feita altas horas da noite à luz de archotes (com certeza para evitar entusiasmos prematuros), marcou-se o dia da inauguração com a passagem de uma caravana oficial

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Comentário do conto "O Galo Impertinente"..

O conto “O Galo Impertinente” apresenta a história da construção de uma estrada e do mistério ligado a ela. A construção da estrada, que deve apresentar o alto nível da tecnologia rodoviária, cria muita curiosidade em todas as pessoas que vão visitar as obras. Os engenheiros explicam-lhes pacientemente todos os detalhes técnicos do projeto, mas a construção demora muito, as pessoas perdem o interesse e os trabalhadores a motivação. 
Depois de muito tempo da construção, quando ninguém se lembra mais dela, a estrada fica pronta e vem o dia da inauguração. Toda a gente adora a estrada e considera-a magnífica. Mas o entusiasmo não dura muito. Logo no dia seguinte aparece um galo estranho que ataca os carros e destrói-os. Os viajantes têm medo dele e evitam passar por essa estrada. As pessoas estão assustadas e resolvem caçar o galo. Primeiro tentam apanhá-lo numa rede de pesca e depois até usam armas, mas sem nenhum resultado. Por isso pedem ajuda ao ministério da guerra que manda um canhão que não tem sucesso e um tanque que começa a soltar fumaça sem qualquer razão 19 óbvia e fica fundido. A estrada então fica abandonada e esquecida no tempo.

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6 de novembro de 2011

Murilo Rubião: A Armadilha

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez. Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana. Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga.
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Comentário do conto A Armadilha, de Murilo Rubião.

“A armadilha” é uma das narrativas mais enigmáticas de Murilo Rubião. Construída com base na ambigüidade e no suspense, ela desconstrói os esquemas da lógica do senso comum, instaurando, desde o seu início, a incerteza própria do gênero fantástico. A personagem Alexandre Saldanha Ribeiro, mesmo carregando uma mala pesada, rejeita o elevador e usa as escadas para chegar ao décimo andar de um prédio desabitado, sujo e decadente. Ao entrar na sala que buscava, uma grande surpresa o aguarda: um velho está a sua espera empunhando um revolver na sua direção. Este fato inesperado gera no leitor a justificada expectativa de que Alexandre seria assassinado. 
 Isto não é o que ocorre, mas sim um inusitado diálogo entre o velho e Alexandre, iniciado pelo velho: “... esperava a sua vinda. Há dois anos, desta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.” A partir daí, uma seqüência de fatos inverossímeis vão se sucedendo, instaurando a incerteza que caracteriza as narrativas "fantásticas", nas quais o elemento “misterioso” intervém no curso normal dos fatos, resultando em uma ruptura, em um “suspense” instigantes: a arma descarregada, as janelas fechadas com tela metálica, a porta de aço trancada eliminando qualquer possibilidade de fuga para Alexandre, tirando-lhe a chance de escapar à situação de prisioneiro, de vítima de uma armadilha, na qual ficará para sempre: “Aqui ficaremos, um ano, dez, cem ou mil anos.” 
O desvendamento do mistério não ocorre no final do conto. A ambigüidade permanece até o final da história, deixando que o leitor faça a dedução dos fatos finais.
 Em “A Armadilha”, nenhuma explicação é dada aos fatos estranhos e o final da história é inconcluso e ambíguo. Todavia, não estamos diante de um texto que pretende ser mera diversão ou passa tempo vazio de significado. 
Como costuma acontecer nas obras murilianas, este conto veicula uma crítica de cunho moralizante à realidade do mundo contemporâneo. Suas personagens tipificam a condição absurda em que vive o homem, prisioneiro de uma sociedade na qual imperam a incomunicabilidade e a solidão, como inapelável conseqüências da existência humana. 

 Zenobia Collares Moreira.


3 de novembro de 2011

Lygia Fagundes Telles: As Formigas.

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada
Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona avisara-nos por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. 
- É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção. - Estudo Direito. Medicina é ela.
A mulher examinou-nos com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina,tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos de entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
- Ele disse que era de adulto. De um anão.
-De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados...
Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!

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- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui do lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou coçando a cabeça. [...]
- De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louco de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! Mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas.
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está ai no chão do caixote, com um omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
_Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que ela levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
[...] às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão; desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. 
- E as formigas?
- Até agora nenhuma.
- Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
- Eu?! Quando acordei não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo… O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco do silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
- Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei para fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas traçando lá dentro, lógico, mas não foi isso que me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... estão se organizando.
- Como, organizando?
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e.... venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
 Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde da noite, um colega tinha casado e teve festa. [...]
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
- Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram – ela disse.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos de sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha; nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro quem vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
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Lygia Fagundes Telles.

Comentário do conto As Formigas, de Lygia Fagundes Telles

Neste conto tem-se um narrador autodiegético, pois a própria narradora-protagonista é quem vivencia a história contada. Tem-se aqui perspectiva narrativa ou focalização da personagem principal, já que sua ótica direciona a ótica do leitor.
A primeira frase do conto avisa que "já era quase noite", indicando que a história se desenrola à noite ou ao menos em parte. A expressão "quase noite" aponta para o fato de que a luz do dia estava indo embora para ceder lugar ao mundo da escuridão. A ênfase no tempo da noite é dada ao longo de todo o texto. É durante a noite que os fatos ocorrem, como se as personagens não existissem durante o dia. As referências diurnas são rápidas.
Não há comentários sobre os acontecimentos do dia, como se as aulas não tivessem importância. A história transcorre ao longo de um período de três noites e dois dias: não há o fechamento de um ciclo, pois este é interrompido antes de se completarem quatro – representação da totalidade. As garotas descem do táxi em frente à pensão, um velho sobrado que parece esconder alguma verdade angustiante, dada sua aparência, tanto que paralisa por momentos as duas personagens: ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. A intuição inicial preludia algo inquietante: "sinistro", diz uma delas, ante o impacto. A narradora compara as janelas da fachada da casa a olhos, qualificando-os de tristes, estando uma delas com os vidros quebrados.

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Após subirem a escada velhíssima, cheirando a creolina, são recebidas pela velha dona da pensão, que também transmite uma imagem de decadência: o desbotado pijama, as unhas aduncas de esmalte vermelho-escuro descascado e de pontas encardidas, chinelos de salto, tosse encatarrada, peruca negra, balofa. Solta baforadas fortes de charutinho no rosto das meninas. Além de apresentar um aspecto feminino abandonado, sem nenhuma vaidade, tem atitudes que não demonstram tendência maternal positiva alguma com suas novas hóspedes, já que as examina com indiferença e descaso. Ela parece encarnar o protótipo da feminidade terrível, da mulher nefasta e não-acolhedora do regime diurno da imagem: soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara.
As primas entram na sala, primeiro aposento descrito pela narradora. Toda a descrição de seu interior faz crer num ambiente decadente e estranho: saleta escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilhos.
Não havia, entretanto, outra opção de escolha, pois nenhuma outra pensão oferecera condições e preço tão acessíveis às duas garotas. A velhota as convida para conhecer seu pequeno quarto localizado no sótão, ao qual se sobe através de uma escada de caracol muito estreita. O simbolismo da escada se liga à passagem de um nível a outro, estabelecendo relações de ascensão e valorização. É também a representação da graduação da passagem de níveis existenciais/psicológicos a outros. É necessário subir esta estreita escada em espiral para chegar ao minúsculo quarto, lugar onde acontecerá uma transformação de nível espiritual para material - uma inversão, portanto. A escada contribui para este clima estranho de uma montagem de um esqueleto que surgirá depois.
Conto fantástico que nos faz entrar no universo da autora e suas constantes viagens pelo universo feminino, talvez o mais sensível ou disponível para prestar atenção às questões da existência. Trata-se de duas primas universitárias, uma delas a narradora, que se vão instalar num quarto alugado numa casa tão decrépita quanto a sua dona, que, apesar da idade, usa uma destoante peruca preta (é interessante notar que a descrição que se faz da peruca (era mais negra que a asa da graúna) estabelece uma intertextualidade com Iracema, de José de Alencar. Esse recurso é muito comum na obra, havendo referências que vão de Olavo Bilac até à Divina Comédia).
Curioso é perceber que não há presença masculina alguma no texto, apenas a menção a um antigo inquilino do quarto em que as meninas estão se instalando e os ossos que ele havia deixado no cômodo. Uma das garotas, estudante de Medicina, interessa-se pelos restos, ainda mais quando descobre que são de um anão, o que os torna de extrema raridade. O mais incrível é que no meio da noite o quarto das moças é tomado por um cheiro ruim (bolor?) e por formigas que não se sabe de onde vêm, mas que se dirigem claramente para o recipiente em que estavam guardados os ossos, justamente embaixo da cama (esse lugar é riquíssimo de simbologia psicológica, estando ligado ao inconsciente e a pensamentos que são exilados, escondidos lá. Haveria aqui uma menção à sexualização, constantes nos sonhos da protagonista?) da estudante de Medicina.
E, para aumentar o tom macabro, a narradora havia sonhado com um anão (os ossos corporificados) de olhos azuis a olhar para ela. Eis uma presença masculina inquietante. Quando a prima da narradora vai verificar se não havia algum resíduo que na caixa que pudesse atrair as formigas, nota que os ossos tinham sua posição mexida, pois a cabeça, que estava no fundo, passara para a posição superior. Matam os insetos. No dia seguinte, não há resto algum deles, sendo que ninguém havia feito a limpeza do quarto. Na madrugada seguinte, quando a protagonista tem outro pesadelo, em que havia marcado encontro com dois namorados no mesmo local e hora, é acordada pela prima, que comunica o retorno das formigas.
E, completando o clima assustador, os ossos haviam mudado mais uma vez de posição, estando a cabeça entre os ombros e a coluna recompondo-se. Estaria então o anão se reconstituindo. Diante desse mistério, a futura doutora resolve passar a noite em claro e descobrir de onde vinham as formigas. Mas adormece, assim como a narradora. Esta última é acordada aos sustos pela parenta. As formigas haviam voltado e o esqueleto estava quase reconstituído, faltando apenas um osso da perna e outro do braço. Fogem desabaladamente da casa.
Neste conto se classifica uma situação de ironia na descrição da dona da pensão, em sua frustrada tentativa de aparentar uma juventude inexistente, resultando em uma quase caricata mulher.
Em todo o conto, o tema das oposições se faz presente, em uma tensão dualística que vai num crescendo, através das dialéticas luz/escuridão, ordem/caos, sono/vigília, realidade/sonho, vida/morte, humano/ inumano, curiosidade/temor, contedo/continente. Quando se fala da ambigüidade da narrativa fantástica, é que o protagonista-narrador é aquele que designa a duplicidade da narração fantástica e a contradição que ele imprime à obra.
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Aila Sampaio, autora do livro “Os fantásticos mistérios de Lígia”. Editora Expressão Gráfica, 2009