14 de novembro de 2013

Marina, a Intangível, de Murilo Rubião.


“Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, terrível como um exército bem ordenado?” (Cântico dos Cânticos, 6,9)

Antes que tivesse de gritar por socorro, o silêncio me envolveu. Nem mesmo ouvia o bater do coração. Afastei da minha frente a Bíblia e me pus à espera de alguma coisa que estava por acontecer. Certamente seria a vinda de Marina.
Agoniado pela ausência de ruídos na sala, levantei-me da cadeira e quis fugir. Não dei sequer um passo e tornei a assentar-me: eu jamais conseguiria romper o vazio que se estenderam sobre a madrugada. Os sons teriam que vir de fora.
Afinal, duas pancadas longas e pesadas, que a imobilidade do ar fez ganhar em volume e nitidez, ressoaram, aumentando os meus sombrios pressentimentos. Vinham da capela dos capuchinhos, em cuja escadaria eu sempre me ajoelhava, a caminho do jornal.
Como persistisse o meu desamparo, balbuciei uma oração para Marina, a Intangível. A prece ajudou-me a reprimir a angústia, porém não me libertou da incapacidade de cumprir as umas poucas tarefas noturnas.
Sem me impressionar com o fato de a capela não possuir relógio, apertei a cabeça entre os dedos, procurando me concentrar nas minhas obrigações diárias. A cesta, repleta de papéis amarrotados, me desencorajava.
Movia-me, desinquieto, na cadeira, olhando com impotência as brancas folhas de papel, nas quais rabiscara umas poucas linhas desconexas. Além da sensação de plena inutilidade, o meu cérebro seguia vazio e não abrigava nenhuma esperança de que alguém pudesse me ajudar.
Para vencer a esterilidade, arremeti-me sobre o papel, disposto a escrever uma história, mesmo que fosse a mais caótica e absurda. Entretento, o desespero só fez crescer a dificuldade de expressar-me. Quando as frases vinham fáceis e enchia numerosas laudas, logo descobria que me faltara o assunto. Escrevera a esmo.
Inventei várias desculpas para explicar a minha inesperada inibição. Culpei o silêncio da madrugada, a falta de colegas perto de mim. Não me convenci: e nos outros dias? Eu era o único jornalista destacado para o plantão da noite. Sendo o jornal um vespertino, logicamente só ocupava os seus redatores na parte da manhã.
Tentei ainda persuadir-me de que, escrevendo ou não, o resultado seria o mesmo. O redator-chefe nunca aproveitava, na edição do dia, os meus artigos e crônicas, nem deixava determinadas as tarefas que eu deveria cumprir. Para suprir essa desagradável omissão, restava-me inventar, a procurar, ansioso, em velhos papéis, a matéria que iria utilizar nas minhas reportagens. Já abordara, em trabalhos extensos, os menores detalhes do trajeto que, ordinariamente, fazia entre a minha casa e o jornal, sem me esquecer de falar (com ternura) do nosso jardim. Um pequenino jardim , em forma de meia-lua, com algumas roseiras e secas margaridas.! Muito antes de ouvir o surdo rumor das pancadas, a expectativa me enervava. Não mais podia esperar. Que surgisse o que ameaçava vir! A qualquer momento poderia ser arrastado da cadeira e atirado ao ar. A ação da gravidade estava prestes a ser rompida.
De novo abri a Bíblia. Agora menos intranquilo. O silêncio se desfizera e, mesmo sabendo que as horas eram marcadas por um relógio inexistente, tinha a certeza de que o tempo retomara o seu ritmo. (Isso era importante para mim, que não desejava ficar parado no tempo.)

LEIA MAIS, clicando na frase abaixo.

Comentário do conto Marina, a Intangível, de M. Rubião.


A escrita de Murilo Rubião é polissêmica e polifônica. Mesmo com toda a concisão e praticidade almejada por ele, há uma plurissignificação discursiva em cada enredo, no qual há uma confluência de vozes e de acepções. Vamos recordar aqui o 87. “Princípio do iceberg” que citamos no primeiro capítulo desta pesquisa. Nesse princípio, Hemingway sugere que apenas uma pequena parte do conto se mostra claramente para o leitor. O restante fica “submerso”. É nessa parte submersa que encontramos a polissemia e a polifonia discursiva em Rubião. E para entender essas entrelinhas, tentamos emergir pelo menos parte desse iceberg, em cada um dos contos. 
O conto “Marina, a Intangível”, como os demais, vem introduzido pela epígrafe bíblica. Marina é a palavra-mulher antevista nessa epígrafe, extraída do livro Cântico dos Cânticos. Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, como um exército bem ordenado? (Cânticos dos Cânticos, VI, 10. In: RUBIÃO, 2006, p. 25). 
O questionamento levantado, nesse trecho bíblico, coloca-nos diante de uma encruzilhada interpretativa. Em uma via, encontramos um questionamento acerca da mulher. O pronome “quem” é próprio para pessoa e não para coisas. Além disso, o pronome demonstrativo “esta” e os adjetivos “formosa” e “escolhida” estão todos no feminino. Entretanto, em outra via, torna-se possível o entendimento da personificação da palavra a ser usada no conto que virá, e a exaltação dessa palavra que surge como a aurora, que tem força e ordenação de um exército em batalha. O fato de o trecho ter sido retirado do Cânticos dos Cânticos, livro bíblico carregado de lirismo e metáforas, permite-nos entendê-lo como sendo a glorificação da palavra, pela mediação do recurso da prosopopeia.

LEIA MAIS, clicando na frase abaixo

22 de outubro de 2013

Solfieri, conto de Álvaro de Azevedo


Influenciado pelas obras de Lord Byron, Álvares de Azevedo foi o maior representante da Segunda Geração Romântica- Os Ultra-româticos. Sua prosa apresenta o noturno, o aventuresco, o macabro, o satânico, o incestuoso, os elementos do romantismo maldito que segue a linha gótica . Abrangem o amor e a morte sob uma perspectiva exacerbadamente egocêntrica.
Mais do que em outras gerações do romantismo, o ultra-romantismo se destacou através do sentimentalismo excessivo e sombrio. Além disso, vários de seus autores tiveram a existência marcada pelo sofrimento, e um reconhecimento literário póstumo.
Assim também foi a trajetória do mais famoso ultra-romântico brasileiro: Álvares de Azevedo viveu e escreveu sob a tétrica fluência Byroniana, falecendo precocemente no dia 25 de Abril de 1852, antes de completar 21 anos. Enquanto seu corpo era sepultado, o amigo Joaquim Manuel de Macedo recitava "Se Eu Morresse Amanhã"; obra escrita por Álvares de Azevedo poucos dias antes. Mas o poeta teria pressentido sua morte? A obra do poeta apresenta elementos próprios da literatura gótica:

SOLFIERI

Sabeis-lo. Roma e a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio a convulsão do amor, o beijo lascivo a embriaguez da crença! 
Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão pôr aquele céu morno, o fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de as luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca.—A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida a lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

LEIA MAIS, clicando na página abaixo

22 de setembro de 2013

Lygia Fagundes Teles. Seminário dos ratos...


Que século, meu Deus! - exclamaram os Ratos e começaram a roer o edifício.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:
- Excelência?
O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.- Pode entrar - disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito.
- Então? Correu bem o coquetel? Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se. Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.
- Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e - consultou o relógio - veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!
- O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta? O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde o secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.
- Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas - começou com certa hesitação. Animou-se: - A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa-forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência, escolhi este azul-pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul... Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?
O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.- É a cor deles. Rattus Alexandrius. - Dos conservadores?- Não, dos ratos. Mas, enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?
- Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires...
- Fui contra a indicação. Desse americano - atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz.
- Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos - acrescentou apontando para o pé em cima da almofada.
- Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

LEIA MAIS, clicando na frase abaixo

Comentário do conto Seminário dos ratos

Seminário dos ratos, conto de Lygia Fagundes Telles, faz parte da coletânea de contos de mesmo nome. Neste conto a autora também rompe com a realidade e com a lógica racional, desenvolvendo uma narrativa compromissada com o fantástico..
Conto narrado em terceira pessoa, organiza-se como uma alegoria de nossas estruturas político-burocráticas. Trata-se de ratos, pequenos e temerosos roedores, numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos, que invadem e destróem uma casa recém restaurada localizada longe da cidade. Ali aconteceria um evento denominado VII Seminário dos Roedores, uma reunião de burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, tendo como assessor o Chefe de Relações Públicas. O país fictício encontra-se atravancado pela burocracia, invertendo-se a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.
O conto surge numa época na qual o Brasil atravessava um complicado momento histórico, caracterizado pela repressão política. No trabalho gráfico da capa da primeira edição do livro Seminário dos ratos, estão dois ratos segurando estandartes com bandeiras à frente de uma figura estilizada – uma espécie de monstro com coroa, um rei no trono, a ser destronado pelos animais?
O próprio nome do conto "Seminário dos ratos" já causa uma inquietação. Um seminário evoca atividade intelectual, local de encontro de estudos, possuindo etimologicamente mesma raiz de semente/sementeira – local para germinar novas idéias. Também traz uma ambigüidade: seminário no qual se discutirá a problemática dos ratos, ou seminário no qual os ratos serão participantes? Essa questão ficará em aberto ao final do conto. A narrativa é introduzida através de uma epígrafe – versos finais do poema "Edifício Esplendor" de Carlos Drummond de Andrade (1955) - da qual já emana um clima de terror, em que os ratos falam, humanizados pelo poeta: Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício. A imagem evocada por este verso já traz um efeito em si, remetendo à história de homens sem alma e a construções sem sentido, que não vale a pena conservar, condensando uma perplexidade frente a situações paradoxais daquele século surpreendente. O nome "esplendor" no título do poema é uma ironia, visto que o edifício descrito pelo poeta é pura decadência.

LEIA MAIS,clicando na frase abaixo

25 de abril de 2013

J. J .Veiga. Os do outro lado.


A casa era grande e alta, de tijolos vermelhos, talvez a mais alta do lugar. Estava atrás de uma cerca de taquara coberta de melões de são caetano. Mas sendo tão grande, tão alta e de cor tão viva, e a cerca não tendo mais que a altura de um homem médio, nunca pude compreender porque não era vista da rua. Desde que me entendo, eu passava por lá todos os dias, para cima e para baixo, lembro-me bem da cerca inclinada aqui e ali ao peso da folhagem, a rua de largura exagerada, o capim crescendo nas fendas da calçada, e no meio da rua os riscos paralelos das rodas dos carros cortados fundo na areia vermelha.
Lembro-me do barranco alto que havia do outro lado, as casinhas equilibradas lá em cima entre mangueiras e abacateiros, as frutas que caíam na rua e que ninguém apanhava, até olhava com certo receio; a roupa estendida na cerca de arame, as pancadas permanentes que vinham de lá, como se a única ocupação daquela gente fosse remendar panelas e tachos, num serviço que nunca acabava. De vez em quando um cachorro latia sem muito entusiasmo e logo se calava, como se estivesse apenas cumprindo uma obrigação, ou avisando que não o esquecessem que ele também queria entrar na paisagem. Lembro-me de tudo isso mas não me lembro da casa vermelha anteriormente aos acontecimentos que vou relatar.
Também não me lembro de ter andado do outro lado, não sei quem morava lá, aquela parte não estava no meu caminho nem na minha curiosidade; só me recordo, como coisa normal e aceita, que os entes que moravam lá não eram para ser vistos, muito menos frequentados ou recebidos. Se acontecia-nos encontrar um deles, virávamos o rosto para o outro lado, ou corríamos caso ele viesse nos falar.
Por causa deles fiquei preso várias horas em casa de uns amigos, onde tinha ido levar um prato de jabuticabas. Vejo-me transportando o prato com muito cuidado porque estava cheio de derramar, a caminhada era difícil por causa das falhas do calçamento, das ladeiras a subir e descer e eu não podia deixar cair uma jabuticaba que fosse. Não que alguém as fosse contar uma a uma e responsabilizar-me pelas que faltassem; eu até comi boa quantidade delas pelo caminho, apanhando-as com a boca por ter as mãos ocupadas com o prato. Mas eu sabia que se deixasse uma só cair no chão uma coisa irreparável aconteceria. A minha responsabilidade era imensa, era como se eu estivesse aguentando nas mãos a mola que impede o mundo de desmanchar-se.
LEA MAIS, cliando  na frase abaixo.

Comentário do conto "Os do outro lado".

O conto “Os do outro lado” é relatado a partir do ponto de vista de um narrador-protagonista, uma criança, que narra os acontecimentos insólitos vivenciados por ele e os transtornos pelos quais passam os habitantes de uma cidadezinha interiorana, submetidos a uma lei superior que não ousam transgredir. Inexistem questionamentos sobre esta lei e quase todos passam a conviver com ela naturalmente. Ou seja: aceitam-na sem indagarem acerca da pertinência da mesma.
A narrativa é iniciada com o narrador apresentando um curioso e inusitado fato: a descoberta de uma enorme casa vermelha até então absolutamente estranha para ele, não obstante estar situada em um lugar por onde transitava diariamente, como relata o trecho a seguir:
“A CASA era grande e alta, de tijolos vermelhos, talvez a mais alta do lugar. Ficava atrás de uma cerca de taquara coberta de melões-de-são-caetano. Mas sendo tão grande, tão alta e de cor tão viva, e a cerca não tendo mais que a altura de um homem médio, nunca pude compreender por que não era vista da rua. Desde que me entendo, eu passava por lá todos os dias, para cima e para baixo, lembro-me bem da cerca inclinada aqui e ali ao peso da folhagem [...]. Lembro-me de tudo isso mas não me lembro da casa vermelha anteriormente aos acontecimentos que vou relatar”.
A seguir, o narrador relembra fatos que aconteceram antes da descoberta da casa de tijolos vermelhos, reforçando mais ainda o mistério que envolve a mesma. Mistério que ele não tem pressa em elucidar, só retomando a intrigante questão da casa, muito depois de ter esgotado o repertório dos acontecimentos passados.

LEIA MAIS, clicando na frase abaixo.

25 de janeiro de 2013

Eça de queirós. O Defunto.

No ano de 1474, que foi por toda a Cristandade tão abundante em mercês divinas, reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, onde herdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem e gentil parecer, que se chamava D. Rui de Cardenas
Essa casa, que lhe legara seu tio, arcediago e mestre em cânones, ficava ao lado e na sombra silenciosa da igreja de Nossa Senhora do Pilar; e, em frente, para além do adro, onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo, era o escuro e gradeado palácio de D. Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza e maneiras sombrias, que já na madureza da sua idade, todo grisalho, desposara uma menina falada em Castela pela sua alvura, cabelos cor de sol-claro e colo de garça real. D. Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa Senhora do Pilar, de quem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de sangue bravo e alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem galanteados, e mesmo por vezes uma noite ruidosa de taverna com dados e pichéis de vinho. Por amor, e pelas facilidades desta santa vizinhança, tomara ele o piedoso costume, desde a sua chegada a Segóvia, de visitar todas as manhãs, à hora de Prima, a sua divina madrinha e de lhe pedir, em três Ave-Marias, a bênção e a graça.
Ao escurecer, mesmo depois de alguma rija correria por campo e monte com lebréus ou falcão, ainda voltava para, à saudação de Vésperas, murmurar docemente uma Salve-Rainha.
E todos os domingos comprava no adro, a uma ramalheteira mourisca, algum ramo de junquilhos, ou cravos, ou rosas singelas, que espalhava, com ternura e cuidado galante, em frente ao altar da Senhora.

LEIA MAIS, clicando na frase abaixo.

Comentário do conto O Defunto, de Eça de Queirós.


O defunto é, para a grande maioria dos pesquisadores queirosianos, a expressão significativa da narrativa fantástica em Eça de Queirós.
Nesse conto, o narrador possui uma intenção e uma execução própria das narrativas fantásticas, bastante desenvolvidas no século XIX, o século em que Eça viveu. O título logo assume um dado estranho.
Em “O defunto” evidencia-se que essa figura tem um papel significativo na diegese.
A época em que se passa “O Defunto” é medieval, com marcações históricas bem definidas. Essa localização espaço-temporal indica que a narrativa se insere em um tempo distante, misterioso, que provoca enigmas e imagens exóticas.
Antecede a aparição do defunto (que é o enforcado) a climatização do que tende a romper com a realidade, com o natural. O espaço no qual se desenvolve a narrativa é ricamente descrito e cria o ambiente de mistério.
Os elementos espaciais surgem: Igreja silenciosa, sombria, um palácio escuro, um chafariz antigo, a penumbra que esconde, o palácio que amedronta. Tal caracterização do ambiente não é em vão: trata-se de uma extensão das personagens do Senhor de Lara e sua Senhora, D. Leonor: vidas sombrias, retiradas.
Mas, a dimensão fantástica do espaço ganha maior intensidade, quando o narrador heterodiegético constrói o caminho percorrido por D. Ruy até Cabril: (...) a aldeia apinhada em torno ao mosteiro franciscano, a velha ponte romana com seu Calvário, e a azinhaga funda que leva à herdade do Senhor de Lara.
Essa gradação de efeitos amedrontadores culmina na chegada ao “Cerro dos Enforcados”, local onde os criminosos condenados à forca eram executados. A atmosfera não é nada convidativa: a presença de um mendigo que toca sanfona, um frade que agoniza, a lua cheia e amarelada, a velha que surge em farrapos, com as longas melenas soltas, vergada sobre um bordão, levando uma candeia e lhe informa sobre o caminho a seguir diante da bifurcação. Ao passar pelos pilares dos condenados, o terror se concretiza: uma voz “suplicante e lenta” pede ao Cavaleiro que se detenha. Era um dos enforcados cuja “face morta, era uma caveira com a pele muito colada, e mais amarela que a lua que nela batia. Os olhos não tinham brilho. Ambos os beiços se lhe arreganhavam num sorriso empedernido. De entre os dentes, muito brancos, surgia uma ponta de língua muito negra.”
Está rompida a ordem natural do Universo. O morto se reanimame fala, conduz e salvará D. Ruy de Cárdenas. O sobrenatural se dá em duas instâncias: a sonora (pois o enforcado chama e depois há um sinistro som de ossos) que contrasta com o silêncio do local (“no imenso silêncio e na imensa solidão”) e a visual. Definitivamente está instalado o insólito na narrativa. Instaurado o insólito, a narrativa avança e o suspende aumenta: qual será a participação do enforcado esta personagem, sem nome específico, desprezada física e moralmente, já que é um condenado, ganha vulto na trama, pois recebe um pedido especiaolíssimo da protetora divina de D. Rui(Nossa Senhora do Pilar).
O enforcado, vestido como o nobre Cavaleiro, de quem usa a capa e o sombreiro, é trespassado pela espada do Senhor de Lara que prepara, habilmente, uma cilada mortal para aquele que dirigia seus olhos para sua Senhora. Portanto, o enforcado salva a vida de D. Ruy de Cárdenas.
Vale ressaltar que o insólito não se encerra na fala e na ação do homem morto. Recebidos os golpes no peito, retorna ao seu lugar de morte na garupa de D. Ruy. Nesse momento, pela primeira vez, este sente arrepiar-se pela figura cadavérica: “Todo se arrepiou o bom cavaleiro ao roçar nas suas costas aquele corpo morto, dependurado de uma forca, atravessado por uma adaga. Com que desespero galopou então pela estrada infindável! (...) E D. Ruy a cada momento sentia um frio mais regelado que lhe regelava os ombros, como se levasse sobre eles num saco cheio de gelo”.
Com um final bem romântico, D. Leonor se casa com o Cavaleiro, encaminhando-se para o final feliz. E o defunto, então, o responsável pela felicidade do casal.