31 de outubro de 2011

Murilo Rubião: A Flor de Vidro.

E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz.” – Zacarias, XIV, 7. 

Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cin-zen-tos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. 
A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Ma-ria-li-ce, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante. — Marialice! Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta da Rosária ou do seu pensamento. — Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!
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Comentário do conto A Flor de Vidro



Aos recursos murilianos usados na formação do fantástico em A Flor de Vidro são a Inadequação de propriedades e a ambigüidade. A Inadequação de propriedades consiste em atribuir a um objeto qualidades que não lhe são próprias, projetando-o assim na realidade fictícia completamente transformado em sua essência. 
No conto A Flor de Vidro encontramos com freqüência seres, mortos que continuam vivos(O pirotécnico Zacarias), animais que falam (Os dragões, Teleco, o coelhinho), flores que nascem de corpos humanos (Petúnia), sentimentos que se materializam, etc. 
Em A Flor de Vidro, Murilo Rubião utiliza esse recurso da troca de propriedades materiais para entidades essencialmente imateriais, rompendo as fronteiras entre matéria e espírito, como pode ser observado no primeiro parágrafo do conto. 
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Maria Ondina Braga: A Filha do Diabo.


Era uma vez uma rainha que carregava consigo o maior dos opróbrios: ser estéril. Uma rainha piedosa e exausta de tanto ter invocado em vão os favores do Céu: Eis aqui a escrava do Senhor!... Recorrendo, obstinada e fervorosa, aos mediadores divinos: Santa Rita de Cássia, advogada das coisas impossíveis, Santa Margarida de Antioquia, mártir. Uma santa que concebera da Hóstia Consagrada (ou da lua?), os olhos em alvo de mística. A rezar, a penitenciar-se, a jejuar, a oferecer esmolas, a acender velas votivas, a rainha, e o seu ventre seco. Os anos, entretanto, a escoarem-se. O rei idoso e afundado no mar de vícios da governação. E o reinado sem descendência. E a raça no fim. Nossa Senhora do Ó. Novenas, missas cantadas, responsos, oblações. E outra vez Santa Rita de Cássia, Santa Margarida de Antioquia. E um santo lá das Arábias (santo ou mago?) por intermédio de quem a soberana do Sabá alcançara de Salomão: Porque os lábios da mulher alheia destilam mel / e a sua boca é mais suave do que o azeite... Condes, duques, gentis-homens a toda hora a rodeá-la, a cortejá-la.  Mas...  e a honra de sua majestade? E a modéstia cristã?
Assim do inverno à primavera, da primavera ao inverno. As primeiras neves nas fontes. As primeiras rugas na face. Vendo-se certa ocasião na bandeja de prata polida que uma serva lhe chegou com um copo de água, apercebeu-se de um bico sob o queixo. Deixou de dormir. E se passava pelo sono, sonhava com anjos que a embalavam sobre nuvens brancas e frias como lages fúnebres.Anjos de calção, braços nus, penteado à donzela: os mesmos que, na capela-mor, velavam o Santíssimo? E belos e capados como os eunucos do palácio. Acordava gelada, a sondar as pancadas do coração, com medo de já estar morta.

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30 de outubro de 2011

Comentário do conto de Maria Ondina Braga, A Filha do Diabo.


Publicado na década de oitenta do século anterior, o conto “A Filha do Diabo” é um texto acentuadamente crítico. Fazendo uso do “fantástico” e, em certos aspectos, de elementos do “maravilhoso”, a narradora constrói um painel dos desconcertos dos poderosos, das incongruências e superficialidade da religiosidade católica e da condição feminina na sociedade.
Todavia, apesar das oscilações religiosas da Rainha, a narrativa não presume um enfoque maniqueísta, não levantando, portanto, a questão da luta entre o “Bem” contra o “Mal”, entre Deus e o Diabo. Não há conflito entre essas duas forças. A Rainha simplesmente, por conta da sua desilusão com os santos que ignoraram suas preces e pedidos, por seu livre arbítrio aliou-se ao Diabo, visando à obtenção do que, para ela, constituía um bem supremo, uma defesa aos interesses do trono, ou seja: engravidar, dar um herdeiro para a coroa. Na verdade, para ela, ser mãe não significava a realização de um desejo de mulher, mas sim o cumprimento de uma quase obrigação de sua condição de rainha.
Fica implícito que o Reino (metáfora do Estado e do Poder) tanto poderia escolher Deus como preferir o Diabo, de acordo com os seus interesses políticos. Assim, a defesa dos interesses do Reino, não caberia qualquer tipo de escrúpulo. Os interesses da coroa estavam acima de tudo e de todos. Daí o adultério da Rainha, visando conceber um herdeiro para garantir a continuidade do trono.  Na luta pela preservação deste, vale tudo, não importa que o parceiro seja o Diabo.

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Comentário do conto A Máquina Extraviada



A obra de José J. José J. Veiga fez sua estréia em 1959, doze anos depois do precursor do fantástico no Brasil, Murilo Rubião. Sua obra Veiga é normalmente associada à literatura fantástica ou ao chamado realismo maravilhoso latino-americano do século XX.
A narrativa do conto, que leva o mesmo título do livro, tem como centro gravitacional da ação um fato insólito: o súbito aparecimento de uma enorme máquina em um povoado, trazida em caminhões por desconhecidos mal humorados, silenciosos, agressivos e pouco interessados em dar informações sobre a procedência da máquina.
O artefato foi armado na frente da prefeitura, sem que ninguém soubesse quem o enviou ou quem o solicitou, para que ela serve e como funciona. As autoridades locais não a solicitaram e, como o restante da população, desconhecem quem é o responsável pelo estranho objeto, enigmático, imóvel e sem utilidade que não seja a de servir de decoração.
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18 de outubro de 2011

Murilo Rubião: O Pirotécnico Zacarias

"E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela-d'alva.”..(Jó, XI, 17)

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?...A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo - o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado. A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma palavra.
Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente. A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.
- Simplício Santana de Alvarenga!....
- Presente!....
Senti rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.
- "Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao tempo tirem os seus chapéus!”.
(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.)....
- Simplício Santana de Alvarenga!.
- Não está?.
- Tire a mão da boca, Zacarias!.
- Quantos são os continentes?
- E a Oceania?.
Dos mares da China não mais virão as quinquilharias.
A professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam D. Josefina a ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de barbante, quase encostada no teto.....
- Simplício Santana de Alvarenga!....
- Meninos, amai a verdade!....
A noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu. Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio. O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite que o branco desceria até a terra.
As moças que vinham no carro deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o melhor destino a ser dado ao cadáver.

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Comentário do conto O Pirotécnico Zacarias.

O Pirotécnico Zacarias é um dos melhores contos de Murilo Rubião. Nele, temos um narrador autodiegético (um narrador que protagoniza a história que narra) e que, considerando se trata de um “morto vivo”, instaura o efeito fantástico na narrativa, na medida em que, paradoxalmente, narra a própria morte, movimentando-se em um plano no qual estão eliminados os limites entre VIDA e MORTE. Tal condição abre espaço para Zacarias transitar livremente de um estado para outro, além de permitir que ele viva simultaneamente esses dois estados antagônicos e inconciliáveis.
Esta insólita situação rompe radicalmente com o princípios da lógica, resvalando para uma inconcebível contradição, na proporção em que contraria o princípio estabelecido segundo o qual duas proposições que mutuamente se contradizem não podem ser consideradas verdadeiras e, portanto, jamais será possível afirmar e negar concomitantemente a mesma coisa, sob pena de provocar uma negação do real. A transgressão de tal princípio significaria o advento de uma nova lógica que irromperia sob a égide do princípio da contradição, via absurdo.
Esta lógica contraditória e insólita é a que rege a instauração do fantástico muriliano neste conto, na qual qualquer tipo de diferença é banida, permitindo que estados tão diferenciados, antinômicos e inconciliáveis sejam nivelados, confundindo-se no indizível do fantástico.
No próprio conto são levantadas algumas respostas lógicas pelas personagens que tentam encontrar uma explicação para o inusitado fato que testemunham. Daí o surgimento de indagações: “Teria morrido o pirotécnico Zacarias?” As possíveis explicações lógicas e verossímeis são dadas na narrativa, à guisa de excluir ou dirimir o paradoxo instaurador do fantástico. Duas hipóteses de explicação, que reduziria o efeito fantástico a um mero fato natural, sem mistério, são discutidas:

1) O pirotécnico estaria vivo e o morto não passava de alguém parecido com ele.
2) O pirotécnico estaria morto e o vivo era alguém parecido com ele.

Ora bem, a escolha, pelo leitor, de qualquer uma das sugestões dissolveria o paradoxo e, consequentemente, excluiria o elemento fantástico. Todavia, se, por um lado, ambas as escolhas são lógicas e coerentes, ambas neutralizariam o efeito fantástico, por outro lado elas são igualmente possíveis. Sendo assim, a ambigüidade típica do fantástico permaneceria: O pirotécnico poderá estar vivo ou poderá estar morto.
O conto questiona a condição existencial do homem, a sua condição dramática, a sua tragédia individual: Zacarias só tem a sua existência reconhecida depois que morre. Quando era vivo, todos o ignoravam, nunca o perceberam como um ser humano. Ele passa a ter existência no âmbito do trágico.
O texto convida a uma reflexão sobre a realidade humana. Afinal, o que é o homem antes e depois de sua morte? Em qual das duas condições ele existe mais? Esta resposta cabe aos leitores responderem.
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Imagem na postagem: Foto de Murilo Rubião.




16 de outubro de 2011

O Fantástico Literário


No fantástico literário podemos de distinguir três propostas estéticas:

1) a do Fantástico Tradicional;
2.) a do fantástico neomitológico;
3.) a do Realismo Mágico.

O FANTÁSTICO TRADICIONAL, proveniente da Europa, é teoricamente bem definido e estudado por vários autores europeus, dentre os quais se distingue Tzvetan Todorov.[1] Segundo esse autor, o fantástico se instaura quando a realidade cotidiana é invadida pelo elemento sobrenatural, podendo ainda ser propiciado por alucinações, delírios, pesadelos, loucura ou por manifestações que não podem ser explicadas pela ciência ou pela razão humana das personagens.
Roger Callois aponta várias classes temáticas recorrentes no fantástico tradicional: “o pacto com o demônio; a alma penada que exige para seu repouso que uma certa ação seja realizada; o espectro condenado a caminhar eterno e desordenado; a morte personificada, aparecendo no meio dos vivos; a “coisa” indefinível e invisível, mas que pesa, que está presente; os vampiros; a maldição de um feiticeiro que provoca uma doença espantosa e sobrenatural; a mulher-fantasma vinda do além, sedutora e mortal, etc.”[2]

NO FANTÁSTICO NEOMITOLÓGICO, segundo as informações de Fábio Lucas Pierini, é originário dos Estados Unidos, os autores introduzem em suas narrativas uma série de criaturas inumanas aparentemente desvinculadas dos mitos etno-culturais-religiosos e outros seres lendários já existentes. Essa vertente do fantástico resultou de um esforço conjunto dos autores americanos do norte em construir uma literatura que viesse a ser completamente desvinculada da européia. Não possuindo um passado nacional de onde retirar seus mitos, lendas e outras crenças e, recusando a influência da cultura indígena nativa, bem como a dos povos africanos escravizados, viram-se forçados a criar uma nova mitologia, quando na verdade estavam apenas dando nova roupagem ao que tinham como referências. [3]

O REALISMO MÁGICO, surgido, em 1925, com esse nome no âmbito das artes plásticas, entre pintores do pós-expressionismo alemão. A intenção deles era revelar os objetos cotidianos sob uma nova perspectiva., o termo passou a ser aplicado à toda manifestação literária fantástica oriunda da América Latina.
Segundo Irlemar Chiampi, o realismo mágico tornou-se “um achado crítico-interpretativo, que cobria, de um golpe, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (mágica) da realidade”.[4] Contudo, a autora recusa a expressão “realismo Mágico”, de uso corrente na crítica hispano-americana, preferindo substituí-lo pela expressão “realismo maravilhoso”, no seu entender mais adequado à realidade latino-americana.[5]
As narrativas de Murilo Rubião não podem ser compreendidas a partir dos modelos narrativos e das teorias do fantástico tradicional, do mesmo modo que não lhe servem as teorias que orientam a leitura do fantástico neomitológico e do realismo mágico (ou do realismo maravilhoso).
Como acontece com a obra de F. Kafka, a obra muriliana insere-se em uma outra variante do fantástico que se enquadra nos modelos antes referidos. Como bem observa Audemaro Taranto Goulart, “basta abrir qualquer livro de Murilo Rubião para perceber-se, às primeiras cenas, que se transita no terreno do absurdo”.[6]
O elemento fantástico nos contos de Murilo Rubião dilui as relações tradicionais do texto com o receptor, integrando o leitor dentro de um universo alicerçado num absurdo verossímil. A ausência de perplexidade, a anulação do espanto, frente ao fato insólito, sobrenatural ou absurdo faz com que a narrativa muriliana afirme-se em sua modernidade.

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Notas

[1] Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica, S. Paulo: perspectiva, 1975.
[2] Roger Callois, citado por T. Todorov, Op. Cit., p. 109.[3] Fábio Lucas Pierini, Infantil e adulto: dois fantásticos em José J. Veiga
[5](http://www.literaturafantastica.hpg.ig.com.br/)
[4] Irlamir Chiampi.O realismo maravilhoso, S. Paulo: Perspectiva, 1980, p. 19.
[5] Irlemir Chiampi explica a sua opção pela expressão realismo maravilhoso Poe ser esse termo já consagrado pela Poética e pelos estudos crítico-literários em geral, e se presta à relação estrutural com outros tipos de discurso (o fantástico, o realista). O termo “mágico”, ao contrário, é tomado de outra série cultural e acoplá-lo a realismo implicaria ora uma teorização de ordem fenomenológica (a atitude do narrador), ora de ordem conteudística (a magia como tema). Op. Cit,. P. 23.
[6] Audemro T. Goulart. O contofantástico de Murilo Rubião, p. 25.

14 de outubro de 2011

J.J.Veiga e Murilo Rubião: representantes do fantástico brasileiro

 
O fantástico de Murilo Rubião talvez seja mais intelectual. Os seus fantasmas são mais concebidos pelo espírito... Ao passo que os de Veiga são fornecidos pelo real, pelo folclore nacional, pelas crenças populares, já que as suas personagens são construídas de gente simples e humilde de nosso hinterland. Nesse sentido, os seus contos chegam a ser até regionalistas. Bastante brasileiros mesmo,
Assim como na obra de Murilo, o fantástico de J.J. Veiga não apresenta fadas, fantasmas ou demônios; o que se revela é uma trama de situações dolorosas que conduz ao absurdo. A atmosfera que paira nos contos de Veiga é de opressão e desespero, fruto de uma tensão desencadeada pela alegoria que denuncia a violência física ou moral.
A obra de José J. Veiga é normalmente associada à literatura fantástica ou ao chamado realismo maravilhoso latino-americano do século XX. Sua estréia ocorreu em 1959, doze anos depois do suposto precursor do fantástico no Brasil, Murilo Rubião, mas ainda antes que o gênero se popularizasse nas letras nacionais, a partir do final da década de 60.
Um breve parênteses: é preciso notar que estão sendo usados os termos “fantástico” e “realismo maravilhoso”, como referentes a recursos e procedimentos literários semelhantes, o que não significa qualificá-los como sinônimos. Manifestações literárias diversas estética e temporalmente, o fantástico (nascido na Europa do século XVIII) e o realismo maravilhoso (também chamado “realismo mágico”, característico da literatura latino americana do século XX) possuem como ponto de aproximação o fato de criarem realidades não miméticas, irreais, sobrenaturais.
Exemplificando com três contos de Cavalinhos de Platiplanto: no conto título, um garoto foge, em sonho, para um universo paralelo onde o desejo de possuir um cavalo, irrealizável neste mundo, torna-se realidade. Aqui, o insólito representa a fuga (onírica) da realidade cotidiana do personagem, criando uma outra cuja extensão é a realidade insólita, e a qual pode sempre recorrer.
Em “A usina de trás do morro”, uma cidadezinha se vê invadida por forasteiros que alteram a rotina de vida da população ao extremo, provocando situações fantásticas. Nesse caso, há a invasão física do insólito sobre a realidade cotidiana das personagens.
Já em “Roupa no coradouro”, não há sonho, nem fantástico: é a morte da mãe que, insólita para a criança, irrompe em seu cotidiano.
Em todos os casos, uma nova realidade (absurda) se forma depois de contrapostos os dois universos (cotidiano e insólito), pelos quais os personagens circulam, seja quando o insólito irrompe no cotidiano ou quando se viaja deste para aquele. A linha que os separa não é claramente demarcável, há uma continuidade entre as duas esferas que só seria notado a uma relativa distância, da qual o leitor-cúmplice não dispõe. Esta situação é metaforicamente explicada pelo narrador de Torvelinho Dia e a obra de J. J. Veiga não deixará de carregar, explicitamente ou não, o sentimento de insatisfação contra quaisquer sistemas de opressão
A narrativa de J. J. Veiga, no referido livro, impressiona exatamente pela sensibilidade com que reflete o território da infância (ainda que com amargor, tristeza e angústia), e por uma profundidade que chega a assustar! Muitas vezes com uma carga de emoção que chega a ferir! Dos doze contos do livro, oito são narrados por crianças! São eles: A Ilha dos Gatos Pintados, A usina atrás do morro, Os cavalinhos de Platiplanto, Os do outro lado, Fronteira, Tia Zi rezando, A Invernada Sossego do e Roupa no coradouro.

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Fonte: Nilto Maciel. Literatura Fantástica no Brasil


A Construção do Fantástico na obra de Murilo Rubião


A estrutura da narrativa tradicional realista organiza-se segundo as categorias do senso comum e da realidade, apoiando-se numa espécie de pacto de objetividade, de veracidade, estabelecido entre o autor e o leitor. Por isso mesmo esse tipo de narrativa procura respeitar a ordem objetiva do tempo cronológico e dos planos espaciais, assim como as fronteiras entre o real e o imaginário, a vida e a morte, recorrendo sempre ao princípio da causalidade como procedimento mimético, com o que pretende assegurar a maior identidade possível entre a lógica do enredo e aquela do mundo real.
A narrativa fantástica coloca em xeque exatamente esse modo retórico de organização do relato, na medida em que instaura no próprio texto a desordem e a fratura. O novo discurso efetua uma desconstrução crítica da nossa representatividade empírica do real, fazendo com que o mundo cotidiano, aquele em que vivemos. Perca todo o contorno, torne-se o lugar do improvável, do fantástico. E numa atitude ainda mais radical, o texto decreta o questionamento dos postulados básicos da apreensão científica do mundo, os princípios da causalidade, da não-contradição, da identidade, denunciando a ilusão de um projeto que pretenda captar toda a complexidade do real apoiado apenas nos parâmetros objetivistas da ciência.
Para tornar efetivo o seu propósito de desconstruir criticamente a realidade, o escritor de narrativas fantásticas pode lançar mão de objetos insólitos, seres pitorescos e extravagantes, praticantes de ofícios estranhos ou anacrônicos, seres dotados de uma inconfundível vocação imaginária, cuja presença no texto é sintoma de uma propensão para o milagroso, o mágico, o fantástico e o mítico-lendário.
Outro caminho para a configuração do fantástico é a manipulação de elementos que compõem a ordem objetiva, elementos capazes de despertar a credulidade do leitor, mas que são alterados nas suas qualidades essenciais, convertendo-se em seres imaginários. Para conseguir criar uma atmosfera insólita, Murilo Rubião lança mão de recursos como:

1. O EXAGERO
2. A REITERAÇÃO
3. A OMISSÃO DE DADOS
4. O PARADOXO
5. A ATRIBUIÇÃO DE PROPRIEDADES INADEQUADAS A
- SERES OU OBJETOS;
            5.1 Efeitos sem caus
            5.2. Causas que não produzem efeitos
            5.3.. Incongruência entre causa e efeito
            5.4.Efeitos não proporcionais à causa
6. RUPTURA DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE
7. A DILUIÇÃO DAS CATEGORIAS ESPACIOTEMPORAIS;
8. A METAMORFOSE
9. A FIGURA DO DUPLO



1. O EXAGERO ou HIPÉRBOLE, ou seja, o aumento (ou diminuição) gradativo das propriedades de um elemento narrativo (situação, personagem, coisa). É o exemplo do conto Aglaia, no qual o casal após evitar contatos sexuais e se esterilizar, continua gerando filhos, que “nasciam com seis, três, dois meses e até vinte dias após a fecundação. Jamais vinham sozinhos, mas em ninhadas de quatro e cinco”. Uma coisa é considerada exagerada a partir do momento em que rompe os limites da realidade. A diminuição física, tendendo ao desaparecimento total, é tema central do conto O bloqueio, que narra a progressiva desmontagem de um prédio. O movimento redutivo é bidirecional: de cima para baixo e vice-versa. Ambos os casos definem-se como expressões hiperbólicas geradoras de uma temática fantástica. Os contos Bárbara e O edifício são também exemplos de uso do exagero na configuração do insólito.
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