14 de dezembro de 2012

Petúnia, conto de Murilo Rubião


Nem sempre amou Petúnia. Mas não sabia de quem a tivesse amado tanto, enquanto Petúnia.
Eles gostavam dos jardins, dos pássaros, dos cavalos-marinhos, de suas filhas –Três louras Petúnias, enterradas na última primavera: Petúnia Maria, Petúnia Jandira, Petínia Angélica.
Quando dos pequeninos túmulos, colocados à margem da estrada, saíram os minúsculos titeus, nada mais pertencia a Éolo. Cacilda se assenhorara do seu talento, das suas recordações. Proibira-lhe visitar os jazigos das meninas, levar-lhe copos-de-leite, azaléias. Vedou-lhe o jardim, tomou-lhe o binóculo. É que apareceram os timóteos, umas flores alegres, eméritos dançarinos. Divertiam-se as miúdas Petúnias, brincando de roda, ensinando-lhes a dança, despindo-se das pétalas. A sua nudez aborrecia Cacilda. Sem protesto, Éolo aguardava as begônias, naquele ano ausentes.
Longa se tornou a espera e se punha triste por andar sozinho pelo quarto úmido. Impedido de franquear as janelas, que a esposa mandara trancar com pregos, ele imaginava com amargura os lindos bailados dos timóteos, a alegria das louras Petúnias. Por que Petúnia-mãe as julgava mortas, se nada apodrecera?
A primeira Petúnia, Petúnia Maria, filha de Petúnia Joana, levou-o a acreditar que os dias seriam felizes.
-chamo-me Cacilda. Nenhuma delas se chama Petúnia – gritava a mulher. (Cacos de vidro, perdeu-se o amor de encontro à vidraça.)
Por que begônias? Felônia, felonia. Fenelão comeu a pedra – Petúnia Jandira gostava de histórias:
-Papai, quando virão os proteus?
-Não comem gente, são dançarinos, filhinha.
-E os homens?
-Fenelão comeu a pedra. Era lírico o Fenelão.
Éolo não tinha planos de casamento, porém sua mãe pensava de outro modo:
-Sou rica e só tenho você. Não admito que minha fortuna vá para as mãos do Estado. – E, irritada diante dessa possibilidade, alteava a voz:
-Quero que ela fique com os meus netos!
Vendo que não conseguia mudar as convicções do filho, nem seduzido com a visão antecipada de possíveis descendentes, descaía para a pieguice.
-Além do mais, amor, quem cuidará do meu Éolinho?
O diminutivo era o bastante para enfurecê-lo. Saía batendo as portas até seu quarto.
Periodicamente dona Mineides promovia festinhas, enchendo a casa de moças, esperançosa de que o rapaz casasse com uma delas. Às que reuniam, na sua opinião, melhores qualidades para o matrimônio, insinuava, aparentando uma felicidade um tanto fingida: “Alguém terá que substituir-me e cuidar dele com o mesmo carinho”.
As jovens concordaram, felizes por se tornarem cúmplices da velha.
O filho bocejava. Ou se irritava ouvindo os gritinhos histéricos, as perguntas idiotas, a admiração das mocinhas pelo casarão, onde o mau gosto predominava.
Enfastiado, esperava esvaziar-se o recinto, cessasse o alvoroço das inquietas raparigas. Terminada a festa, dona Mineides e os criados já recolhidos aos aposentos, os pássaros invadiam as salas, voavam em torno dos lustres, pousavam nos braços das cadeiras. Não cantavam. Ruflavam de leve as asas, para não despertar os que dormiam, pois jamais permitiam que outras pessoas, além dele, os vissem em seus vôos noturnos.
Estava Éolo, numa tarde, a soltar bolhas de sabão, quando ouviu de longe a mãe berrar:
-Éolo, seu surdo, venha cá!
Relutou em atender ao chamado, tal o seu desagrado pelo tom brusco com que solicitavam a sua presença na sala.
A velha aguardava-o impaciente. Logo que pressentiu seus passos no corredor, avançou em direção do filho, arrastando pelas mãos uma moça que pouco à vontade a acompanhava:
-É ela.
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Comentário do conto Petúnia

―Petúnia é um conto cuja epígrafe traz idéia de ameaça, que apresenta um tom mais intimidativo do que a noção de advertência. Audemaro Taranto estabelece oposições entre casas x espinhos e urtigas, e fortaleza x azevinho, considerando que o azevinho, por ser planta medicinal, deveria estar próximo à casa, enquanto os espinhos e urtigas deveriam cercar a fortaleza. A epígrafe sugere que o nascimento dessas plantas ocorre de forma deslocada, encerrando, com isso ―a punição que se avizinha.
Nesta história, Éolo ( da mitologia, o deus do vento) é um homem fraco, submisso à mãe, D. Mineides ( na mitologia grega, as filhas de Minias foram levadas à loucura e cortaram um homem em pedaços, depois foram transformadas em morcegos.). Éolo se casa com Cacilda cujo nome se muda em Petúnia e Joana no decorrer do conto. As filhas também trazem o nome da planta: Petúnia Maria, Petúnia Jandira e Petúnia Angélica. As mulheres são as dominadoras. A mãe, depois que morre, encarna-se num retrato, que é colocado no quarto do casal. A maquiagem da velha derrete-se e é constantemente retocada pelo filho dominado.
 A metáfora de flor, secularmente associada ao feminino, ganha vida e crueldade nessa fantástica história: Petúnia mãe estrangula as petúnias filhas, pondo culpa na sogra. As filhas são enterradas/ plantadas em canteiros. Toda noite, o pai desenterra as filhas, que dançam no jardim, entre titeus e proteus, plantas que trazem nomes mitológicos.
Cacilda/ Petúnia coleciona cavalos-marinhos, que impedem que Éolo saia de casa. Cacilda tem um comportamento suspeito, deixando a casa pela manhã e só regressando à noite. De seu ventre, à noite, cresce uma flor negra e viscosa. Éolo arranca essa planta horrenda, mas ela retorna sempre. Por fim, o marido mata a esposa, enterrando-a no jardim. Mas as flores negras se multiplicam e invadem sua casa, onde ele fica bloqueado, com medo de ser denunciado.
Como o mitológico Sísiso, condenado à circularidade de seus trabalhos, o protagonista é condenado a essa horrível eternidade de retocar o retrato da mãe, desenterrar as filhas e arrancar as flores.
O desfecho do conto remete o texto para a perspectiva de uma obra aberta, sujeita a uma interpretação
múltipla. Esse desfecho tende para o infinito, para uma eterna repetição, onde o protagonista Éolo, como o mitológico Sísifo empurrando eternamente sua pedra, terá que desenterrar as filhas, retocar o quadro da mãe morta e arrancar as flores negras vindas do ventre da esposa, que lhe condenaram àquele suplício.
Hipérbole e repetição são elementos recorrentes na criação do fantástico nesse texto moderno de Murilo Rubião.
Em alguns momentos do conto, o sonho adquire a forma de um pesadelo, como no caso em que escorre a maquilagem do retrato da mãe do protagonista, tornando possíveis as mais aterrorizantes cenas surrealistas, como as rosas negras que brotam do ventre da figura feminina e invadem a casa, e os estranhos rituais noturnos de meninas assassinadas que, sendo gente e flor a um só tempo, são desenterradas para dançar.
A personagem masculina é, assim, condenada a cuidar da memória das entidades mortas: as filhas, a mulher, a sogra. O homem não se livra de seu passado, é atormentado por ele.


18 de outubro de 2012

O Mistério da Árvore - Raul Brandão



Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.
Em frente ficava o Palácio real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca. Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada diante do Palácio. Tudo que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino.
Nem uma folha nem uma ave – nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca. No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipitados, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lages duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...
Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se, naquela terra praguenta, ela envolta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados com a Primavera, cobrindo a terra erma, que calcavam, de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores esvoaçavam pela sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de propósito para os ver passar.
Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia. Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fragas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra, e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e hirta – fora-o sempre – e os seus frutos cadáveres ou corvos. À passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia séculos servia de forca.
Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmúrios, no vento que atirava para o castelo ramos de árvores luminosos. Punha -se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam enfim falar!... Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entro um bafo novo: cheiravam a sol e a lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore
Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente belos, mas deles irradiava uma força imensa – daquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais diante de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor! Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apoderaram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos... Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu.

25 de setembro de 2012

Murilo Rubião. O Bloqueio.



“O seu tempo está próximo a vir, e os seus dias não se alongarão.”
(Isaías, XIV, 1)

 No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal, tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar no novo dia, confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade. Pôr isso não deu de imediato importância à vibração de vidros, atribuindo-a a um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para fortalecer essa frágil certeza. O barulho era intenso. Vinha dos pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e consultou o relógio: três horas. Achou estranho. As normas do condomínio não permitiam trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação de Gérion contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser excelente a administração do prédio. De repente emudeceram os ruídos.
Pegara novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se.
Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo?
Do temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para sua casa, que abandonara, às pressa, pôr motivos de ordem familiar. Vestiu-se, olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã ensolarada, pensando se ainda veria outras.
Mal abrira a porta, chegou-lhe ao ouvido o matraquear de várias brocas e pouco depois estalos de cabos de aço se rompendo, o elevador despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá em baixo com uma violência que fez tremer o prédio inteiro.
Recuou apavorado, trancando-se no apartamento, o coração a bater desordenadamente. – É o fim pensou. – Entretanto, o silêncio quase se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.
Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzido a pó fino amontoado nos cantos.
Não via rastros das máquinas. Talvez já estivessem distantes, transferidas a outra construção, concluiu aliviado.
Descia tranqüilo as escadas, a assoviar um música em voga, quando sofreu o impacto da decepção: dos andares inferiores lhe chegava toda a gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.

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Comentário do conto O Bloqueio.

“O Bloqueio” apresenta vários elementos constitutivos do conto, segundo a teoria elaborada por Poe. Durante todo o conto o narrador mantém a tensão necessária para prender a atenção do leitor, que deverá ler o conto numa “assentada”. Outro ponto a ser considerado é a circunscrição de um espaço fechado. O tempo e o espaço acham-se condensados; o conto se passa num espaço reduzido.
O autor cria, em “O Bloqueio”, uma situação absurda, vivida por Gérion, um homem que abandona esposa e filha, saturado da presença grotesca da mulher, rica e manipuladora, que o humilha constantemente. Gérion, para se libertar dessa figura repugnante, refugia-se em um apartamento, em fase final de construção. Coisas estranha acontecem: ele é incomodado constantemente pelo ruído de uma máquina que destrói base e a parte superior do prédio onde se encontra. Tenta evadir-se, mas percebe que a parte inferior do edifício acha-se destruída e que o apartamento está suspenso no ar. Sente a presença da máquina, à espreita, rondando seu apartamento, aguardando um deslize seu, para que possa enfrentá-lo. O conto termina com o protagonista entrando na sala, fechando a porta com a chave, ao mesmo tempo maravilhado e estarrecido ao se deparar com um arco-íris, formado pelas luzes que penetravam pelas frinchas do apartamento, emanadas pelo maquinário fantasmagórico.
A máquina constitui a questão fundamental do conto “O Bloqueio”; é em torno dele que gravita toda a história; ela está presente nos sonhos de Gérion e o persegue nos momentos de vigília. A partir dessa idéia, podemos falar numa segunda história, construída metaforicamente, e que revela o processo de construção do conto. A “história secreta” encontra-se apoiada em três pontos fundamentais: o autor, a personagem Gérion e o leitor.

26 de agosto de 2012

Murilo Rubião, O Edifício,


Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei.(Miquéias,VII, 11)

"Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de "vagas experiências de outra escola de concretagem". Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.
A LENDA. Ao engenheiro responsável, recém-contrarado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia. Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia. Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados.
Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, conseqüentemente, o malogro definitivo do empreendimento. No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranqüilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu: — Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

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Comentário do conto "O Edifício", de M. Rubião.


A situação que se observa em “O edifício” é de imprevisibilidade, posto que as causas propostas não produzem o efeito esperado, para desespero do engenheiro João Gaspar, contratado na juventude para terminar um edifício de ilimitados pavimentos. Este se vê no fim da vida impotente diante do projeto absurdo que insiste em se concretizar, apesar dos seus apelos para que paralisassem os trabalhos de construção. O seu discurso, que de início revelava-se apenas ineficaz, termina por produzir um efeito exatamente contrário ao que ele pretendia:
“Fazia longos discursos e, muitas vezes, caía desfalecido de tanto falar. A princípio, os empregados se desculpavam, constrangidos por não ouvirem atentamente as suas palavras. Com o passar dos anos, habituaram-se a elas e as consideravam peça importante nas recomendações recebidas pelo engenheiro-chefe antes da dissolução do Conselho. Não raro, entusiasmados com a beleza das imagens do orador, pediam-lhe que as repetisse. João Gaspar se enfurecia, desmandava-se em violentos insultos. Mas estes vinham vazados em tão bom estilo, que ninguém se irritava. E, risonhos, os obreiros retornavam ao serviço, enquanto o edifício continuava a ganhar altura."
Temos uma causa que não funciona como princípio que suscite o efeito produzindo-se. O vazio que se abre com essa infração do princípio de causalidade já não permite determinar com precisão o encadeamento lógico dos fatos, porquanto o efeito já não resulta da eficiência da causa, mas sim como inversão radical e arbitrária da relação de causalidade, como um lance gratuito do imaginário.
Desprovido do poder e perdido num projeto que constatou ser de fato impossível, o engenheiro aos poucos se resignou a observar, com desânimo, a força invencível do prédio que teimava em subir. Mesmo as suas medidas intransigentes para interromper o trabalho, como a demissão de todos os funcionários, não impediram que eles continuassem o dever imposto por autoridades inimagináveis, trabalhando, por fim, “à noite e aos domingos, independente de qualquer pagamento adicional."
O conto se organiza como uma metáfora da lenda bíblica da Torre de Babel cuja construção teria terminado em consequência da enorme confusão gerada pela dificuldade de comunicação entre os trabalhadores que passaram a falar idiomas diferentes por terem desafiado a Lei do Senhor ao pretenderem construir uma torre que os levasse até o céu.  

12 de junho de 2012

Sophia de Mello Breyner Andresen: O Jantar do Bispo

A casa era grande, branca e antiga. Em sua frente havia um pátio quadrado. À direita um laranjal onde noite e dia corria uma fonte. À esquerda era o jardim de buxo, úmido e sombrio, com suas camélias e seus bancos de azulejo.
A meio da fachada descia uma escada de granito coberta de musgo. Em frente dessa escada, do outro lado do pátio, ficava o grande portão que dava para a estrada.
A parte de trás de casa era virada ao poente e das suas janelas debruçadas sobre pomares e campos via-se o rio que atravessa a várzea verde e viam-se ao longe os montes azulados cujos cimos, em certas tardes, ficavam roxos.
Nas vertentes cavadas em socalco crescia a vinha. Era ali a terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra, o gelo do Inverno, a doçura da Primavera e o fogo dos Estios. E dizia-se que o vinho daquelas encostas, como um bom poema, nunca envelhecia. À direita, entre a várzea e os montes, crescia a mata, a mata carregada de murmúrios e perfumes e que os Outonos tornavam doirada.
Mas agora era Inverno, um duro Inverno desolado e frio, e o vento desfazia o fumo azul que subia das pequenas casas pobres. Os caminhos estavam cobertos de lama. Um longo soluço parecia correr pelas estradas.
O Dono da Casa estava de pé, encostado à lareira acesa na sala grande, rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos. Estava calado, alheio à conversa: meditava, pesava as suas razões, defendia em frente de si próprio a sua causa e a sua justiça. Faltava o último convidado, que era o Bispo.
O Dono da Casa tinha um pedido a fazer ao Bispo. Fora mesmo por isso que o convidara para jantar. E era por isso que, enquanto o esperava, ele meditava e preparava os argumentos da sua razão.
De facto, ali, naquelas terras de sossego, naqueles domínios submissos onde ele e seu pai e seus avós tinham exercido uma autoridade indiscutida, ali onde antes sempre reinara a ordem, tinha surgido agora uma semente de guerra.
Esta semente de guerra era o padre novo, um jovem padre de sotaina rota e cabelo ao vento, pároco de Varzim, pequena aldeia miserável onde moravam os cavadores da vinha. Havia muito tempo que Varzim era pobre e sempre cada vez mais pobre, e havia muito tempo que os párocos de Varzim aceitavam com paciência, sempre com mais paciência, a pobreza dos seus paroquianos. Mas este novo padre falava duma justiça que não era a justiça do Dono da Casa. E parecia ao Dono da Casa que, dia após dia, semana após semana, mês após mês, a sua presença ia crescendo como uma acusação que o acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o tocava. E ali na sua casa cujos donos tinham sido de geração em geração símbolo de honra, virtude, ordem e justiça, parecia-lhe agora que cada gesto do Padre de Varzim o chamava a julgamento para responder pelos tuberculosos cuspindo sangue, pelos velhos sem sustento, pelas crianças raquíticas, pelos loucos, os cegos e os coxos pedindo esmola nas estradas.
Finalmente surgira uma questão de contas com um caseiro e o Abade de Varzim tomara a defesa do caseiro.
— Padre — dissera o Dono da Casa —, eu pensava que o seu ofício era ocupar-se de rezas e não de contas. Os problemas morais pertencem-lhe. Os problemas práticos são comigo. Peço-lhe que deixe César ocupar-se do que é de César. Eu na sua igreja não mando: só assisto e apoio. O problema que estamos a discutir é meu, é do mundo, é um problema material e prático.

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Comentário do conto O Jantar do Bispo, de Sophia de Mello B. Andresen


Cada conto de Sophia M. B. Andresen, a coletânea “Contos Exemplares”, ilustra uma moralidade que reflete uma filosofia da existência.
A partir da situação inicial, a narradora desenvolve uma narrativa que aponta para valores éticos, econômicos e religiosos. A chegada do Bispo, do Homem Importante, do pobre e o desaparecimento misterioso destes dois últimos, conotado com as forças do Mal e do Bem,
Configuram o “fantástico” em O Jantar do Bispo.
Na primeira parte do conto, uma descrição começa por delimitar um espaço físico constituído pela casa “grande, branca e antiga”, triplamente definida por características materiais (o tamanho, a cor) e por características temporais (antiga).

A descrição minuciosa da casa dá conta de todos os seus ângulos:

(1) Em “frente da casa, um pátio quadrado”;

(2) À direita, um laranjal onde corria uma fonte;

(3) À esquerda, um jardim de bucho, úmido e sombrio, com suas camélias e seus bancos de azulejo

(4) A meio da fachada descia uma escada de granito coberta de musgo. Notar que o musgo se associa à noção de tempo, de coisa antiga;

(5) Em frente da escada ficava o gradeado pórtico que dava para a estrada. O portão é o elemento de transição entre a casa e o mundo.

Em seguida, a narradora passa a descrever o exterior, a natureza. Neste quadro a sua atenção concentra-se na VINHA, que produz uma anotação social, a qual permite definir o espaço exterior como uma antítese entre o mundo dos ricos (definido por regras estéticas – a casa - e o mundo dos pobres, referido pelo trabalho (a vinha).
Outra antítese se coloca na página 52: “Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho”, que contrasta a divisão social que caracteriza o cenário.” (Frase esta que pode ser uma alusão: quanto mais pobre fica o que cultiva a terra e planta a vinha, mais rico se torna o dono do vinho).
O contraste entre a exuberância da natureza é reforçado logo a seguir pela confrontação de dois tempos, introduzida pela adversativa MAS e pelo adjetivo AGORA:
“Mas agora era Inverno, um duro Inverno desolado e frio e o vento desfazia o fumo azul que subia das pequenas casas pobres. Os caminhos estavam cobertos de lama. Um longo soluço parecia correr pelas estradas.
Enquanto a descrição exterior não focaliza os seres humanos, a descrição interior vai pôr em evidência o DONO DA CASA (símbolo da autoridade e por isso designado através de uma apelação genérica): 
“O DONO DA CASA estava de pé, encostado à lareira acesa na sala grande, rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos”. Nesta breve apresentação predominam sinais de conforto (a lareira acesa), de autoridade (o Dono da casa ocupava a posição central) e de proximidade (a família, os vizinhos). No entanto a personagem está inquieta, expectante. Aguardava a chegada do Bispo a quem tinha um pedido a fazer: a transferência do padre novo que, ao contrário dos seus antecessores, falava de uma justiça que não era a justiça do Dono da Casa. Tal transgressão transformava-se em uma ameaça. Torna-se clara a oposição entre o Dono da casa e o Padre de Varzim. A chegada do jovem padre de sotaina rota e cabelo ao vento, capaz de transgredir a ordem estabelecida, tomando a defesa dos pobres contra o patrão habituado a mandar e a possuir, incomodava demais o Dono da Casa.
As duas personagens antagônicas caracterizam-se por atitudes, valores e práticas completamente diferentes:
O DONO DA CASA reclama o respeito pela ordem, que o protege nas suas prerrogativas, e situa-se no plano material.
O PADRE DE VARZIM situa-se no plano do espiritual e reclama a caridade.
Ambos evocam a Justiça, mas em nome de princípios contrários, o que conduz inevitavelmente ao conflito.
A prática do Dono da Casa aflora-se na expressão das aparências, visto que as suas atitudes visam produzir efeito imediato: manter a sua autoridade na aldeia. No seu nome tudo obedece a uma hierarquia: o lugar dos miseráveis ficava um pouco abaixo do dos criados, um pouco acima do dos cães..
O interior da casa corresponde ao valor que o Dono da Casa dá as aparências: “móveis pomposos, falsos dourados, tinham sido acrescentados às antigas mobílias escuras”. O novo riquismo se traduz por uma acumulação excessiva de tapetes, cortinas complicadas, retratos dos da casa que contrastavam com o dos seus antepassados.
O discurso da narradora ironiza não só o gosto das aparências como o gosto da autocontemplação do Dono da Casa.
O dono da Casa arma tudo de maneira a ter sucesso em sua empresa de afastar o padre indesejado. No entanto, a caracterização das duas personagens em contraste e em conflito sugere uma luta em que se enfrentam os valores negativos do Dono da Casa e os valores positivos do Padre, Simbolicamente, esta oposição equivale a uma batalha entre o MAL e o BEM cuja solução se encontra na futura atitude do Bispo. Este é o elemento fundamental na dinamização da intriga.
O Bispo está numa situação paralela à do Dono da Casa: tem também um pedido a fazer: o teto da igreja. A estratégia do Bispo é estimular a vaidade do Dono da Casa.
Quando a intriga começa a avançar para a conversa entre o Dono da casa e o Bispo um novo acontecimento intervêm: A chegada estrondosa e estranha do HOMEM IMPORTANTE.
Somente o menino de 9 anos rejeita o visitante (encarnação do diabo): “a sombra daquele homem era enorme e enchia os tetos”. Mas isso era uma coisa que somente a criança via.. O discurso moralizante dom hábil visitante ajuda ao Dono da Casa e ao Bispo a formularem os seus pedidos e a concretizarem os seus desejos.
A resolução da intriga converge para a concretização dos objetivos de ambos, graças às argumentações do Homem Importantíssimo, que funcionou como um hábil advogado. Dois cheques de 50 contos selaram o negócio que garantiu o teto novo para a igreja e a “venda” do Padre de Varzin.
Enquanto isto, na cozinha da casa vem bater um pobre que quer ver o Dono da Casa e enfrenta a recusa dos criados. Ele vinha da parte do Padre de Varzim. A cada negativa dos criados, a tempestade violenta aumenta, como um coro trágico que pontua os diversos movimentos narrativos e reflete simbolicamente a cólera Divina. A cada negativa dos criados, a tempestade ribombava e as luzes se apagavam. O menino gostou do mendigo e o atendeu. Joana serviu um prato ao mendigo. Este não o comeu e foi embora.
No entanto, o espírito do Bispo estava pesado de confusão; quando retornou à estrada a caminho de sua casa, provocando a piedade de Deus. A partir daí inicia-se o desencadeamento do mistério e dos fenômenos fantásticos: O aparecimento do mendigo na estrada e recebe um convite do Bispo para seguir de carro e que, subitamente desapareceu, a tomada de consciência do Bispo do erro cometido e o seu retorno à mansão do Dono da casa para desfazer o negócio, o inexplicável desaparecimento do Homem Importante, o misterioso desaparecimento do cheque que este dera ao Bispo, além das tempestades e visões do menino, tudo apontando para a presença de fenômenos sobrenaturais.


5 de junho de 2012

Os Cavalinhos de Platiplanto, de J. J. Veiga

O meu primeiro contato com essas simpáticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criança. O meu avô Rubem havia me prometido um cavalinho de sua fazenda do Chove-Chuva se eu deixasse lancetarem o meu pé, arruinado com uma estrepada no brinquedo do pique. Por duas vezes o farmacêutico Osmúsio estivera lá em casa com sua caixa de ferrinhos para o serviço, mas eu fiz tamanho escarcéu que ele não chegou a passar da porta do quarto. Da segunda vez meu pai pediu a seu Osmúsio que esperasse na varanda enquanto ele ia ter uma conversa comigo. Eu sabia bem que espécie de conversa seria; e aproveitando a vantagem da doença, mal ele caminhou para a cama eu comecei novamente a chorar e gritar, esperando atrair a simpatia de minha mãe e, se possível, também a de algum vizinho para reforçar.
Por sorte vovô Rubem ia chegando justamente naquela hora. Quando vi a barba dele apontar na porta, compreendi que estava salvo pelo menos por aquela vez; era uma regra assentada lá em casa que ninguém devia contrariar vovô Rubem. Em todo caso chorei um pouco mais para consolidar minha vitória, e só sosseguei quando ele intimou meu pai a sair do quarto.
Vovô sentou-se na beira da cama, pôs o chapéu e a bengala ao meu lado e perguntou por que era que meu pai estava judiando comigo. Para impressioná-lo melhor eu disse que era porque eu não queria deixar seu Osmúsio cortar o meu pé. Cortar fora? Não era exatamente isso o que eu tinha querido dizer, mas achei eficaz confirmar; e por prudência não falei, apenas bati a cabeça.
—Mas que malvados! Então isso se faz? Deixa eu ver.
Vovô tirou os óculos, assentou-os no nariz e começou a fazer um exame demorado de meu pé. Olhou-o por cima, por baixo, de lado, apalpou-o e perguntou se doía. Naturalmente eu não ia dizer que não, e até ainda dei uns gemidos calculados. Ele tirou os óculos, fez uma cara muito séria e disse:
—É exagero deles. Não é preciso cortar. Basta lancetar. Ele deve ter notado o meu desapontamento, porque explicou depressa, fazendo cócega na sola do meu pé:
—Mas nessas coisas, mesmo sendo preciso, quem resolve é o dono da doença. Se você não disser que pode, eu não deixo ninguém mexer, nem orei. Você não é mais desses menininhos de cueiro, que não têm querer. Na festa do Divino você já vai vestir um parelhinho de calça comprida que eu vou comprar, e vou lhe dar também um cavalinho pra você acompanhar a folia.
—Com arreio mexicano?
—Com arreio mexicano. Já encomendei ao Felipe. Mas tem uma coisa. Se você não ficar bom desse pé, não vai poder montar. Eu acho que o jeito é você mandar lancetar logo.
—E se doer?
—Doer? É capaz de doer um pouco, mas não chega aos pés da dor de cortar. Essa sim, é uma dor mantena. Uma vez no Chove-Chuva tivemos que cortar um dedo —só um dedo— de um vaqueiro que tinha apanhado panariz e ele urinou de dor. E era um homem forçoso, acostumado a derrubar boi pelo rabo.
Meu avô era um homem que sabia explicar tudo com clareza, sem ralhar e sem tirar a razão da gente. Foi ele mesmo que chamou seu Osmúsio, mas deixou que eu desse a ordem. Naturalmente eu chorei um pouco, não de dor, porque antes ele jogou bastante de lança-perfume, mas de conveniência, porque se eu mostrasse que não estava sentindo nada eles podiam rir de mim depois.

Comentário de Cavalinhos de Platiplanto.

Na narrativa “Os cavalinhos de Platiplanto”, o espaço do sonho se torna o local onde as frustrações podem ser atenuadas e os desejos realizados já que em suas próprias vidas isso não é possível. No conto, o sonho do narrador realiza o desejo que ele tinha de receber o cavalinho prometido por seu avô aparece de modo realizado. No sonho, o narrador toma conhecimento de tal concretização. Vale salientar que é a tensão com a família que aproxima o menino do avô, e este estando do lado da fantasia, remete para o sonho. Todavia, o pensamento mágico é o da infância, e em Veiga, só a criança habita esse espaço mágico – espaço do sonho. Criança transita livremente do real para a fantasia e vice-versa. Já o adulto é preso ao real, não consegue sequer compreender o que está fora do saber real.

O sonho do garoto se inicia com a ida dele a uma fazenda nova e desconhecida. O espaço se apresenta como um lugar novo, reelaborado, idealizado pelo inconsciente, totalmente diferente dos locais que o sonhador está acostumado a freqüentar. Aliás, como é comum nos sonhos. Por isso, a chegada a esse local é feita por uma ponte que não era de atravessar, mas de subir. Ele recebe a tarefa de terminar a ponte e a cumpre. Pronta a ponte, o menino desce pelo outro lado, onde encontra um menino com “medo de tocar bandolim”, e ele leva o pequeno músico a perder o medo.

É o menino do bandolim que, tocando uma toada, transporta o menino-narrador para o espaço do sonho, a fazenda, o major e o extraordinário espetáculo dos cavalinhos maravilhosos.

Findo o sonho, o menino volta ao real, e reconhece os objetos do seu quarto. Relembra o que sonhou e resolve não falar para ninguém o que vira. Sabe que poderá voltar a ver o cavalinhos pela lembrança.

Note-se que o conto se inicia com a seguinte frase: “o meu primeiro contato com essas simpáticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criança”. No entanto, já adulto, ao assumir a narração do seu sonho, sua condição de narrador permite-lhe a lembrança, a permanência no sonho que povoara a sua infância.


17 de maio de 2012

Alfredo, conto de Murilo Rubião.


“Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de Jacó.”
(Salmos 23,6)

Cansado eu vim, cansado eu volto. A nossa primeira desavença conjugal surgiu quando a fera ameaçou descer o vale. Joaquina, a exemplo da maioria dos habitantes do povoado, estava preocupada com os estranhos rumores que vinham da serra,
Inicialmente pretendeu incutir-me uma tola superstição. Ri-me da sua crendice: um lobisomem?! Era só o que faltava!
Ao verificar que ela não gracejava e se punha impaciente com o meu sarcasmo, quis explicar-lhe que o sobrenatural não existia. Os meus argumentos não foram levados a sério: ambos tínhamos pontos de vista bastante definidos e irremediavelmente antagônicos. 
Com o passar dos dias, os gemidos do animal tornaram-se mais nítidos e minha mulher, indignada com o meu ceticismo, praguejava.
Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinha uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas.
Esperei, por algum tempo, que a fera abandonasse o seu refúgio e viesse ao nosso encontro. Como tardasse, saí à procura, ignorando os protestos de minha esposa e as ameaças de romper definitivamente comigo, caso eu persistisse nos meus propósitos.
Iniciara a excursão ao amanhecer. Pela tarde, depois de estafante caminhada, encontrei o animal.
Nenhum receio me veio ao defrontá-lo. Ao contrário, fiquei comovido, sentindo a ternura que emanava dos seus olhos infantis.
Sem fazer qualquer movimento agressivo, de vez em quando levantava a cabeça -  pequenina e ridícula – e gemia. Quase achei graça no seu corpo desajeitado de dromedário.
O riso brincou frouxo dentro de mim e não aflorou aos lábios, que se retorceram de pena.
Com muito cuidado para não assustá-lo, fui me aproximando. Uma pequena distância nos separava e, tímido, perguntei o que desejava de nós e a quem dirigia a sua desalentadora mensagem. Nada respondeu. Não me dei por vencido ante o seu silêncio. Insisti com mais vigor:
-De onde veio? Por que não desceu no povoado ? Eu o esperava tanto!
O meu constrangimento aumentava à medida que renovava inutilmente as perguntas. Em dado momento, vendo que falava em vão, perdi a paciência:
-E o que faz aí, plantado como um idiota no cimo desta montanha?
Parou de gemer e fitou-me com indisfarçável curiosidade. Em seguida, sem tirar o chapéu, murmurou:
-Bebo água.
A frase, pronunciada com dificuldade, numa voz cansada, cheia de tédio, desvendou-me o sentido da mensagem. 
Na minha frente estava o meu irmão Alfredo, que ficara para trás, quando procurei em outros lugares a tranqüilidade que a planície não me dera.
Tampouco eu viria encontrá-la no vale. Por isso vinha buscar-me.
Depois de beijar a sua face crespa, de ter abraçado o seu pescoço magro, enlacei-o com uma corda. Fomos descendo, a passos lentos, em direção à aldeia.
Atravessamos a rua principal, sem que ninguém assomasse à janela, como se a chegada do meu irmão fosse um acontecimento banal. Ocultei a revolta e levei-o pela ruazinha mal calçada que nos conduziria à minha residência. Joaquina nos aguardava no portão. Sem trocarmos sequer uma palavra, afastei-a com o braço. Contudo, ela voltou ao mesmo lugar. Deu-me um empurrão e disse não consentir em hospedar em nossa casa semelhante animal.
-Animal é a vó. Este é meu irmão Alfredo. Não admito que o insulte assim.
-Já que não admite, sumam daqui os dois!
Alfredo, que assistia à nossa discussão com total desinteresse, entrou na conversa, dando um aparte fora de hora:
-Muito interessante. Esta senhora tem dois olhos: um verde e outro azul.
Irritada com a observação, Joaquina deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça.
Tive ímpetos de espancar minha mulher, mas meu irmão se pôs a caminhar vagarosamente, arrastando-me pela corda que eu segurava nas mãos.
Ao anoitecer, encontramo-nos novamente no alto da serra. Lá embaixo, pequenas luzes indicavam a existência do povoado. A fome e o cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o meu passado se desenrolasse, penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal.
(-Joaquim Boaventura, filho de uma égua! – As mãos grossas enormes, avançaram para o meu pescoço. Deixei cair o pedaço de mão que roubara e esperei, apavorado, o castigo.)
Filho de uma égua. Como tinha sido ilusória a minha fuga da planície, pensando encontrar a felicidade do outro lado das montanhas. Filho de uma égua!
Alfredo pediu-me que descansássemos um pouco. Sentou-se sobre as pernas e deixou que eu lhe acariciasse a cabeça.
Também ele caminhara muito inutilmente. Porém, na sua fuga, fora demasiado longe, tentando isolar-se, escapar aos homens, ao passo que eu apenas buscara no vale uma serenidade impossível de ser encontrada.
De início, Alfredo pensou que a solução seria transformar-se num porco, convencido da impossibilidade de conviver com seus semelhantes, a se entredevorarem no ódio. Tentou apaziguá-los e voltaram-se contra ele.
Transformado em porco, perdeu o sossego. Levava o tempo fossando o chão lamacento. E ainda tinha que lutar com os companheiros, sem que, para isso, houvesse um motivo relevante.
Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê? Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu transmudar-se no verbo resolver.
E o porco se fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável.
Entretanto, o verbo resolver é, obviamente, a solução dos problemas, o remédio dos males. Nessa condição, não teve descanso, resolvendo assuntos, deixando de solucionar a maioria deles. Mas, quando lhe pediram que desse um jeito em mais uma briga familiar, recusou-se:
-Isso é que não!
E transformou-se em dromedário, esperando que beber água o resto da vida seria um ofício menos extenuante.
A madrugada ainda nos encontrou no alto da serra. Espiei pela última vez o povoado, sob a névoa da garoa que caía. Perdera mais uma jornada ao procurar nas montanhas refúgio contra as náuseas do passado. De novo, teria que peregrinar por terras estranhas. Atravessaria outras cordilheiras, azuis como todas elas. Alcançaria vales e planícies, ouvindo rolar as pedras, sentindo o frio das manhãs sem sol. E agora sem a esperança de um paradeiro.
Alfredo, enternecido com a melancolia que machucava os meus olhos, passou de leve na minha face a sua áspera língua. Levantando-me, puxei-o pela corda e fomos descendo lentamente a serra.
Sim. Cansado eu vim, cansado eu volto.

Comentário do conto Alfredo, de Murilo Rubião



O conto de Murilo Rubião caracteriza-se pela ausência de uma atitude de espanto diante de fatos que se consideraria como imprevisto. “Alfredo” é o nome do personagem que se metamorfoseia em um dromedário, sem causar perplexidade nos moradores da vila. Estes banalizam a presença do estranho animal e, em lugar de espantados, ficam indiferentes, não se sentem ameaçados ou incomodados pela exótica criatura.
Alfredo, personagem e irmão do narrador, é quem se sente incomodado com a forma de vida entre seus semelhantes, pautada na intolerância, na violência e na animosidade. Por isso, opta por tornar-se outra coisa sem nenhum parentesco com o humano. 
A metamorfose é mais um artifício empregado pelo escritor para criticar o homem moderno. Todavia, esta não tem a pretensão de responder ou resolver as questões e os problemas do mundo. Apenas constrói enigmas que conduzem à reflexão do real. 
A metamorfose, nesse conto, tem o sentido de degradação, de impotência do homem diante do mundo brutal, revelando-o como um ser que não se compreende e, por mais que se esforce, não consegue escapar a sua insatisfatória condição de vida. O absurdo, portanto, não resulta do sobrenatural presente no texto, mas da própria realidade.
Vemos a personagem Alfredo passando pelas mais diversas transformações, num jogo de metamorfoses tão natural que nenhum espanto provoca em seu irmão que assiste a tudo. O que fica evidenciada no conto é a subversão da realidade cotidiana, própria do “realismo fantástico”, gênero introduzido no Brasil por Murilo Rubião.
Considerando que o fantástico, como afirma Tzvetan Todorov em Introdução à Literatura Fantástica, “... permite franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre.” Ou ainda que “... a função do sobrenatural é subtrair o texto à ação da Lei e com isso mesmo transgredi-la.”
Nestes termos, o fantástico é utilizado como meio de burlar a censura e se constitui em estratégia de crítica aos desconcertos do mundo.
No conto “Alfredo” temos a presença de elementos textuais que sugerem um tom de denuncia à realidade política no período ditatorial militar. Murilo utiliza-se habilmente da sutileza e da capacidade critica do fantástico para ludibriar os mecanismos de censura do período, para denunciar os abusos cometidos pelos militares contra a sociedade civil que discordava do regime imposto: “Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinham uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas”, diz o narrador.
Fica explícita nesta mensagem a denúncia da tortura praticada pelo regime ao se referir à “dor de carnes crivadas por agulhas”. Em outro momento do conto, o narrador informa que Joaquina esbofeteia o dromedário: “deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça”. Esse tipo de agressão física era comumente praticada pelos comandados do regime militar que viam a violência e a humilhação como atividades normais conterá os discordantes, considerados 'baderneiros'.
Assim, a tortura praticada nos porões e prédios militares durante o regime militar, quando não provocava a morte das vítimas, acabava deixando seqüelas físicas e psicológicas no torturado. Daí a perda de lembranças do seu passado, ensombrado pelos traumas dolorosos que fragmentaram e dispersaram algumas vivências mais difíceis de serem lembradas. O trecho seguinte caracteriza a angústia veiculadas pelos flasches da memória:
 “A  fome e o  cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o  meu passado de  desenrolasse,  penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal”. 
O realismo fantástico em Murilo Rubião é, de fato, uma estratégia da crítica, um veículo inteligentemente usado pelo autor para expressar a sua náusea pelos desconcertos do mundo seu contemporâneo.


22 de abril de 2012

FRONTEIRA, de José J. Veiga



Eu era ainda muito criança, mas sabia uma infinidade de coisas que os adultos ignoravam. Sabia que não se deve responder aos cumprimentos dos glimerinos, aquela raça de anões que a gente encontra quando menos espera e que fazem tudo para nos distrair de nossa missão;
sabia que nos lugares onde a mãe-do-ouro aparece à flor da terra não se deve abaixar nem para apertar os cordões dos sapatos, Ca cobiça está em toda parte e morde manso; sabia que ao ouvir passos atrás ninguém deve parar ou correr, mas manter a marcha normal, quem mostrar sinais de medo está perdido na estrada.
A estrada é cheia de armadilhas, de alçapões, de mundéus perigosos, para não falar em desvios tentadores, mas eu podia percorrê-la na ida e na volta de olhos fechados sem cometer o mais leve deslize. Era por isso que eu não gostava de viajar acompanhado, a preocupação de salvar outros do desastre tirava-me o prazer da caminhada, mas desde criança eu era perseguido pela insistência, dos que precisavam viajar e tinham medo do caminho, parecia que ninguém sabia dar um passo sem ser orientado por mim, chegavam a fazer romaria lá em casa, aborreciam minha mãe com pedidos de interferência; e como eu não podia negar nada a minha mãe eu estava sempre na estrada acompanhando uns e outros. Mal chegava de uma viagem era informado de que fulano, ou sicrano, ou viúva de trás da igreja, ou o ancião que perdera a filha afogada estava a minha espera para nova caminhada. E sempre tinham urgência, negócios inadiáveis a tratar em outros lugares, se eu não lhes fizesse esse favor estariam perdidos, desgraçados, ou desmoralizados. Como poderia eu recuar e dar-lhes as costas, como se não tivesse nada a ver com os problemas deles? A responsabilidade seria muito grande para meus ombros infantis. Minha mãe preparava a minha matula, dizia “coitado de meu filho, não tem descanso”, beijava-me na testa e lá ia eu a percorrer de novo a mesma estrada, como se eu fosse um burro cativo, levando às vezes gente que eu nem conhecia, e cujos negócios me eram remotos ou estranhos.
Minha única esperança de liberdade era crescer depressa para ser como os adultos, completamente incapazes de irem sozinhos daqui ali; mas quando eu baixava os olhos para olhar o meu corpo de menino, e via o quanto eu ainda estava perto do chão, vinha-me um desânimo, um desejo maligno de adoecer e morrer e deixar os adultos entregues ao seu destino. Eu nunca soube há quanto tempo estava naquela vida, nem tinha lembrança de haver conhecido outra. Teria eu nascido com alpercatas nos pés e trouxinha às costas? Era difícil dizer que não, embora a hipótese parecesse inconcebível.
Se eu me queixava a outras pessoas, elas faziam um ar compungido, engrolavam qualquer coisa para dizer que cada um tem que aceitar o seu destino, e eu compreendia que eles também estavam me reservando para quando precisassem de mim; outros presenteavam-me com garruchinhas de espoleta, automoveizinhos de corda, quando não um par de botinas novas. Tudo o que eles queriam de mim era resignação e presteza. Naturalmente eu podia acabar com aquilo a qualquer hora, mas – e a responsabilidade?
Mas não se pense que as minhas caminhadas para lá e para cá fossem uma rotina desinteressante; nada disso. Raro era o dia em que eu não aprendia alguma coisa nova, e embora a descoberta só tivesse utilidade na estrada, eu a recolhia para utilização futura, ou para ampliação de meus conhecimentos.
Foi ao abaixar-me num córrego para beber água que fiz uma descoberta a meu ver muito importante: descobri que, quando se derruba uma moeda em água corrente, não se deve pensar em recuperá-la. Quem tentar fazê-lo poderá ficar o resto da vida à beira da água retirando moedas. É como se a pessoa “sangrasse” a areia do fundo da água e depois não conseguisse estancar o jorro de moedas.
Talvez eu não devesse ter contado isso a meu pai, pois não era difícil prever o que aconteceria. Ele riu em minha cara, e chamou-me fantasista. Como eu insistisse, ofendido, ele reptou-me a prová-lo. Ainda aí eu poderia ter desconversado, mas não: aceitei o desafio, como se tratasse de um ponto de honra. Levei-o à beira de um córrego, mandei-o soltar uma moeda na água – e só à força conseguimos tirá-lo de lá dias depois; e para impedi-lo de voltar, tivemos de interná-lo. Disseram que a culpa foi minha, mas não consigo sentir-me culpado.
Depois disso notei que as pessoas passaram a me evitar. A princípio pensei que estivessem sendo gentis, tivessem decidido dar-me afinal um descanso, depois de tantos anos de trabalho pesado; mas depois verifiquei que a situação era mais séria, nem na rua conversavam comigo, os poucos que eu conseguia deter estavam sempre apressados, davam uma desculpa e se afastavam sem nem olhar para trás.
De repente ocorreu-me um pensamento medonho: será que minha mãe também pensava e sentia como os outros? Nesse caso, que martírio não seria a sua vida, preocupada todo o tempo em esconder de mim os seus sentimentos! Alarmado com essa possibilidade, eu a observei durante dias, escutei-a no sono, tentando surpreender uma palavra, um gesto, qualquer coisa que me denunciasse o seu estado de espírito. Às vezes me parecia que o meu medo estava confirmado, mas no minuto seguinte eu estava novamente em dúvida. A única maneira de esclarecer tudo era naturalmente abrir-me com ela. Mas logo que comecei a expor-lhe o meu caso percebi o erro que havia cometido. Estava eu certo de querer a verdade, e não a compaixão de minha mãe? Qual seria nesse caso o papel de uma boa mãe – dar-me o que eu queria ou o que eu temia? Que direito tinha eu de forçá-la a uma decisão dessa ordem?
Quando acabei de falar ela abraçou-me chorando e só conseguia dizer: “Meu filho, meu filho tão infeliz!”
Qual seria o sentido dessa frase aparentemente tão clara? Seria pena pela minha sorte de guia forçado, pela minha capacidade de amedrontar os outros – ou estaria ela pensando na minha sina de amedrontador da própria mãe? Chorei também, mas depois percebi que eu não tinha motivo nenhum para chorar, eu estava chorando mais por formalidade, porque o que havia eu feito para estar naquela situação? Que culpa tinha eu da minha vida?
Enxuguei as lágrimas e senti-me como se tivesse acabado de subir ao alto de uma grande montanha, de onde eu podia ver embaixo o menino de calça curta que eu havia deixado de ser, emaranhado em seus ridículos problemas infantis, pelos quais eu não sentia mais o menor interesse. Voltei-lhe as costas sem nenhum pesar e desci pelo outro lado assoviando esfregando as mãos de contente.

(Conto inserido na coletânea Os Cavalinhos de Platiplanto, Ed. Bertrans-Brasil,1997.
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Comentário do conto "Fronteira", de J. J. Veiga


No conto Fronteira de J.J. Veiga a personagem principal - o menino – é também o narrador que conduz a narrativa de acordo com a seu ponto de vista infantil. Assim, é estabelecida uma confrontação entre a idade adulta e a infantil, destacando-se a relação de conflito entre as perspectivas de ambos ao vislumbrarem o mundo, de modo que se a criança percebe as surpresas que o cotidiano proporciona, o adulto as generaliza e banaliza, para mantê-las dentro do habitual.
A partir daí, percebe-se no conto a tensão entre dois espaços desconhecidos entre si e reciprocamente ameaçadores: o real (espaço do mesmo, do que é conhecido), ocupado pelos adultos e o imaginário (espaço do outro, do desconhecido, do medo). Esses dois espaços são como prisões. Mediando os dois tem-se um espaço de trânsito, no qual, de algum modo, é possível escapar “à prisão” dos dois primeiros. Neste, só penetra o narrador-menino.
Além desses, há ainda o espaço do sonho. Os que habitam esse espaço podem ir para qualquer um dos quatro espaços já esboçados. Todavia, somente a criança adentra o espaço do SONHO, esse espaço mágico, que os adultos não conhecem ou que já esqueceram.
A criança transita livremente da fantasia para o real e vice-versa. As passagens de um ao outro lado são abertas. O adulto é preso ao real, não compreende o que está fora do saber real. Portanto não compreendem a criança, suas crenças e superstições infantis, suas visões particularizadas do mundo que a rodeia.
Na maioria dos casos, vê-se que, na perspectiva do narrador, a percepção adulta do mundo é até mesmo desvalorizada, como podemos notar por suas palavras: “Eu era ainda muito criança, mas sabia uma infinidade de coisas que os adultos ignoravam”.
Da mesma forma, o menino ignorava muitas das razões que regiam a vida dos adultos dentro da comunidade rural em que viviam, como a imperiosa e pesada responsabilidade que punham em seus ombros: “Minha mãe preparava a minha matula, dizia “coitado de meu filho, não tem descanso”, beijava-me na testa e lá ia eu a percorrer de novo a mesma estrada, como se eu fosse um burro cativo, levando às vezes gente que eu nem conhecia, e cujos negócios me eram remotos ou estranhos”.
O menino não pode escapar à penosa obrigação de ir-e-vir incessantemente, guiando adultos assustados e temerosos que “tinham medo do caminho”, medo de atravessar estradas desconhecidas: “A estrada é cheia de armadilhas, de alçapões, de mundéus perigosos, para não falar em desvios tentadores, mas eu podia percorrê-la na ida e na volta de olhos fechados sem cometer o mais leve deslize. Era por isso que eu não gostava de viajar acompanhado, a preocupação de salvar outros do desastre tirava-me o prazer da caminhada”.

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7 de abril de 2012

Murilo Rubião: Teleco, o coelhinho


“Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.” (Provérbios, XXX, 18 e 19) 


- Moço, me dá um cigarro? 
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças. 
O importuno pedinte insistia: 
- Moço, oh! Moço! Moço me dá um cigarro? 
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei: 
-Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. 
- Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor; saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
- Você não dá é porque não tem, não é, moço? 
O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato somente o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.
Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho acrescentei. 
A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções: 
Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta: 
- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco. 
Dizendo isto, transformou-se numa girafa. 
- A noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável? 
Respondi-lhe que não e fomos morar juntos. 
Chamava-se Teleco. 
Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas. 
Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos e ameaçavam prendê-los.
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Comentário do conto "Teleco, o Coelhinho". M. Rubião


O conto “Teleco, o Coelhinho” de Murilo Rubião foi publicado em 1965 no seu livro “Os Dragões e Outros Contos”, introduzindo uma série de contos novos do autor. O tema da metamorfose, iniciado no conto “O Ex-Mágico”, segue também em contos como este, objeto de nossa análise. As transformações que acontecem repentinamente com seu personagem revelam uma tentativa inútil de adaptação a um mundo onde não há mais valores como a inocência e pureza. O tom lúdico desse conto serve para mascarar as profundas questões da existência humana. 
O conto é narrado em 1ª pessoa, ou seja, o narrador não é um mero observador, ele faz parte da ação, apesar de não ser o protagonista. Ele não consegue ser imparcial, por isso deixa transparecer seus pensamentos e opiniões nos dois momentos da narrativa: inicialmente, apresenta-se como amigo de um ser de aparência mutante, Teleco, e depois revela sua repulsa em função da mudança de comportamento de Teleco. 
Exemplos dessa parcialidade do narrador são encontrados em trechos como “o seu jeito polido de fazer as coisas comoveu-me”, no primeiro momento; “também a sua figura tosta me repugnava” – o segundo momento da narrativa. 
Exatamente por ser em 1ª pessoa, o narrador tem sua visão limitada, sendo incapaz tanto de conhecer interiormente os personagens dos quais fala como também de explicar os pontos obscuros da história, como por exemplo, o que teria acontecido a Teleco nos dias em que esteve desaparecido. 
“Teleco, o Coelhinho” é inverossímil quanto ao discurso narrativo, mas verossímil enquanto narrativa fantástica. Isso porque o conto apresenta uma seqüência de ações que são impossíveis de acontecer “de verdade”, mas o texto nos é apresentado de uma forma interna tão lógica que nos faz aceitar o irreal como sendo real, sem nenhuma reação contrária. Teleco faz parte de uma reação absurda, mas transportada para uma realidade social possível, pois ele vivencia o jogo da sociedade: quando se autodenomina homem, passa a agir como “o homem”.

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9 de março de 2012

Lídia, conto de Maria Teresa Horta.

Primeiro foi uma espécie de impressão nos ombros e no pescoço. Uma ardência. Uma espécie de queimadura à flor da pele. Tentou ver-se no espelho do quarto: nua da cintura para cima, torcendo-se um pouco. Pareceu-lhe descobrir uma pequeníssima mancha vermelha em cada omoplata. Foi buscar o espelho redondo, cabo de prata trabalhada toda à volta, mas não conseguiu distinguir mais de perto.
Levou os dedos de novo às costas e tacteou um pouco. Mexeu de cá para lá a ver se descobria alguma grossura, mas não sentiu nada; absolutamente nada. Vestiu a blusa mais fina a abotoar à frente, praticamente translúcida e durante o resto do dia quase se esqueceu fresca e leve daquela impressão, daquela comichão.
Ao fim da tarde, quando já fazia escuro, o ardor voltou: docemente, num incômodo sem causa. Lídia nem sabia afinal o que sentia. E quando o marido chegou para jantar encontrou a casa às escuras e fria. Como que vazia na escuridão opaca dos quartos. Gritou: “Lídia!”, mas ela não lhe respondeu logo, entorpecida, entontecida, como se tivesse bebido um pouco.
Realmente Lídia sentia muita sede.
A mãe vomitara sangue quando ela era muito pequena. Vira-a levar os dedos à boca e eles saírem sujos de sangue enquanto tossia sem conseguir parar. Num desespero sem nome. Agarrara-lhe um dos braços abaixo do cotovelo e não o largara mais até a hemoptise acabar, pouco a pouco, de forma surda e equívoca.
O avô que era médico deitara a mãe num cadeirão baixo e largo na casa de jantar, dera-lhe um comprimido, um copo de água gelada. Pusera-lhe um saco de água quente aos pés e sentara-se numa cadeira em frente, hirto, à espera.
Estava muito branco e silencioso, como que a escutar aquele pequeno silvo que saia da boca da mãe, aquele borbulhar contínuo no peito da mãe enquanto tossia e levava um guardanapo de linho à boca e ele voltava sempre manchado de encarnado vivo. A mãe inclinava a cabeça para trás no espaldar forrado do cadeirão e de olhos fechados tentava dominar aquele pequeno repuxo de sangue que lhe subia do corpo a aflorar os lábios cerrados e lívidos; a perderem os contornos.
Lídia lembrou-se da mãe e teve medo, inexplicavelmente, ao lembrar aquelas marcas que julgara perceber nas costas quando olhara no espelho. Simétricas. Totalmente simétricas: em cada omoplata numa pequeníssima dor que começava agora a descer pelos braços, à flor da pele. Um formigueiro, era isso. Como um formigueiro na parte exterior dos braços que prendeu ao pescoço do marido inclinado sobre a cama ainda de casaco vestido tal como chegara da rua.
“Teus braços tão quentes!” – admirou-se ele, beijando-a na boca. Mas ela recuou porque lhe era insuportável o contacto do seu corpo. Nauseada. Percebeu então que asfixiava; as janelas fechadas da casa pareceram-lhe por momentos terem grades.
Lídia recuou enrodilhando a colcha de renda da cama e disse baixo, como se estivesse a perder as forças: “Sufoco”. E não se levantou para fazer o jantar. Dormitou um pouco antes de o marido começar a despir-se para se deitar. Mas quando ele se estendeu a seu lado ela gritou. Um grito estrídulo e modelado.
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Comentário do conto Lídia, de Maria T. Horta

O extraordinário conto de Maria Teresa Horta é conduzido por uma narradora heterodiegética, omnisciente, que, com ostensiva liberdade, devassa a interioridade da personagem principal – Lídia – desvendando os seus pensamentos e sentimentos, sem nenhum tipo de controle. Tal estatuto narrativo permite que tenha domínio pleno dos fatos narrados.
Uma leitura do texto que flutuasse apenas em volta do seu sentido manifesto, seria, decerto, tão limitada quanto é a compreensão do marido de Lídia para o fenômeno da radical mudança de comportamento dela, interpretada como loucura. Nestes termos, o final do conto seria visto como uma tragédia, desencadeada pelo suicídio da personagem, que, convicta de que se tornara uma ave, abre os braços (asas) e pula da janela para a morte.
Só uma leitura atenta para o sentido latente do texto dá conta da riqueza da mensagem por ele veiculada. Assim, dentre as várias formas de compreender o conto, optamos pela leitura do mesmo enquanto alegoria da libertação da mulher. Assim, a aparente loucura de Lídia nada mais é que um signo da “metamorfose interior” pela qual passa a personagem. A aparente loucura de Lídia pode ser vista como a metáfora da mudança gradativa, realizada por meio de um processo de transformação interior da personagem, que a conduz para uma tomada de consciência acerca da sua condição existencial, do seu estar na vida presa a convenções altamente limitadoras e repressoras, originadas de costumes milenares que subalternizam e tratam a mulher de forma desigual e injusta no contexto social e familiar.
A parte final do conto, com a imagem de Lídia alçando o Vôo, representa metaforicamente o ponto culminante desse processo. O salto para o alto representa literariamente um salto de uma situação negativa e repressora para uma outra oposta e libertadora, feita por opção do sujeito. Vale observar que a mudança de Lídia, sendo interior, não se processa de forma brusca e imediata. Ela ocorre lenta e gradativamente.
Lídia não percebe que lhe nascem asas, apenas vê uma mancha vermelha, porque as asas eram simbólicas, significando a mudança interior, logo não poderiam ser percebida através do espelho. Este não poderia refletir o que se passa no interior da personagem: as mudanças de ordem psicológicas, a reviravolta dos sentimentos, a subversão dos valores, as mudanças em sua visão de mundo, as rupturas com os padrões de comportamento vigentes.
O conto, de orientação feminista, se afirma como uma alegoria do despertar da mulher para a sua condição na sociedade, para o papel que lhe é destinado no âmbito das limitadas possibilidades possíveis.
O texto sugere, através de uma alegoria das asas, a libertação da mulher que vive de acordo com os padrões convencionais da sociedade, à medida que ela rejeita o lugar que lhe é marcado no grupo social e parte para a busca de “um lugar não-marcado”, o qual não seria, necessariamente, o de esposa e dona de casa, limitado ao espaço do lar e da família. Como mulher da classe média, casada, ela ocupa o lugar que lhe é marcado, onde deve permanecer e cumprir os seus deveres. É isto o que se espera dela, esse é o comportamento que deve ter, dentro dos princípios da normalidade estabelecidos pelo grupo social.
O processo de transformação de Lídia avança por etapas, é doloroso e alvo da incompreensão dos que a rodeiam. Todavia, uma vez iniciado, não tem caminho de volta... prossegue até à libertação ser conseguida.
O final do conto é de uma tocante poeticidade, com a imagem do vôo da personagem rumo a libertação e ao recomeço de uma vida até então vivida em função do que dela esperava a família e o grupo social, tal como viveram sua avó, sua mãe ...

16 de fevereiro de 2012

Moacyr Scliar. No retiro da figueira.


Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranqüilo, um dos últimos locais – dizia o anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons cinqüenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homens fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe deles, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; e quando uma amiga nossa foi violentada por dois marginais, minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se – como dizia o texto – num novo estilo de vida.
Não fomos os primeiros a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário; entre nossa primeira visita e a segunda – uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.

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